Eduardo Cintra Torres

Uma Solução para o Serviço Público de TV


O que é serviço público de TV hoje? Não pode ser o mesmo do passado. Se tudo mudou, já não podemos tomar como bom o preceito famoso do primeiro presidente da BBC que falava em educar, informar e distrair. Hoje, a tecnologia e o desenvolvimento do meio criaram um potencial explosivo de programas em quantidade e com qualidade que tornou esse notável conceito um pouco caduco quando entregue a uma empresa pública velha e viciada, alimentada por dinheiros públicos.

O meu conceito de serviço público é muito simples: serviço público é um serviço prestado por iniciativa do Estado e da sociedade civil que os privados por si não podem ou não querem prestar. Por exemplo, em Portugal, os serviços públicos de distribuição ao domicílio de água foram nacionalizados nos anos 20 porque os privados que haviam ganho as concessões não estavam em condições de os prestar com qualidade. A actual intervenção do Estado californiano no negócio da electricidade ocorre nas mesmas circunstâncias. Quando a sociedade civil pode prestar o serviço - seja electricidade, jornalismo ou água corrente - não é necessário o Estado empenhar-se. Deve permanecer árbitro, regulador e verificador da qualidade do serviço prestado.

O meu conceito de serviço público de TV exclui o quê? Exclui muitos programas de entretenimento, muitas transmissões desportivas de forte apelo comercial, exclui quase todos os concursos, exclui os "reality shows" (incluindo The Mole), exclui alguma da ficção que a RTP produz.

Este conceito de serviço público inclui o quê? Inclui programas para as minorias culturais e outras; programas documentais de vário tipo; ficção histórica e outra; programas experimentais e realizados com preocupações estéticas; inclui alguma programação desportiva de interesse minoritário; certa programação infantil e juvenil; o cinema que os outros não passam; inclui, mas não necessariamente, programas de informação, como reportagens, debates ou noticiários.

Há enormes resistências ao serviço público assim concebido porque ainda se pretende o controlo político directo da TV do Estado. Esse é o problema nº1. A maior parte das intervenções sobre serviço público de TV que vêm da área do poder não visam em primeiro lugar a substância de serviço público que essa mesmas pessoas defendem mas, primeiramente, o controlo político da entidade do Estado a quem está cometido o referido serviço. Traduzindo: estamos aqui hoje (*) a falar de serviço público de TV ou estamos aqui a falar, por outras palavras, do controlo político da empresa de serviço público e do serviço que presta?

Se os actuais detentores do poder político na empresa de serviço público de TV e os pretendentes a seus substitutos prescindissem, por hipótese que me parece absurda, de ter ou vir a ter um controlo político directo da empresa de serviço público de TV - então poderíamos estar de acordo quanto ao problema nº1, que é, como disse, o controlo político directo da TV do Estado.

Estando de acordo sobre o problema nº1, poder-se-ia avançar para o problema nº2. Porque sem resolver o problema nº 1 não se quer ou não se consegue resolver o problema nº 2. O problema nº2 é a RTP.

Serviço público de TV não é sinónimo de empresa pública de TV, não é sinónimo de televisão feita por uma empresa pública de TV. A RTP é uma empresa que nunca existiu como tal devido ao contínuo controlo político que, desde os anos 50, sobre ela aplicaram. Há muito tempo que se tem tentado reformar a RTP, mas ela é irreformável. Não há solução possível.

Só pode achar que há solução para a RTP a) quem é cínico e pretende prolongar o controle político directo da empresa, b) quem é ingénuo e acha que aquele elefante cheios de cancros ainda pode recuperar ou c) quem ainda considera que serviço público de TV tem que ser feito obrigatoriamente por uma grande empresa pública, mesmo que no estado irrecuperável da RTP.

Eu defendo a extinção pura e simples da RTP. Não me parece que deva haver a mínima nostalgia com a RTP. A RTP é uma empresa, e todos os dias nascem e morrem empresas. O Estado já fechou muitas empresas públicas e vendeu outras, extinguiu "O Século" e vendeu uma série de jornais e a Rádio Comercial, pegou em empresas públicas e fundiu-as numa só ou pegou numa e dividiu-a em várias. Algumas delas tinham, como tem a RTP, algum capital simbólico. Julgo, todavia, que até nesse capítulo, o caso da RTP costuma ser exagerado. À parte o seu arquivo, que está a caminho de ser bem organizado e preservado, o capital simbólico da RTP morreu há muito tempo numa realidade essencial para a sua existência: as pessoas.

A RTP pode ser extinta e continuar a haver o conceito de serviço público. É possível fazer serviço público melhor e mais barato sem a RTP. Julgo mesmo que a RTP é a maneira mais cara que existe para se fazer serviço público mau ou para se tentar fazer serviço público razoável, como também sucede.

Mas o futuro do serviço público não pode ser resolvido apenas com a extinção da actual empresa pública ou da tal "holding". Há outros assuntos para resolver antes, ou em simultâneo.

Eu proponho uma redefinição completa da orgânica do serviço público de TV proporcionado pelo Estado português.

A estrutura deve começar por uma entidade do tipo conselho nacional do audiovisual, proposta que retomo de Vasco Pulido Valente, entidade que emane do Parlamento e inclua representação simbólica do Governo e representação verdadeira da sociedade civil. O estatuto desta entidade deve permitir que funcione e que tenha autoridade. Este organismo assumiria funções actuais da Alta Autoridade, mas reforçadas em aspectos consensuais que estejam expressos na Lei da Televisão ou que estivessem expressos numa lei da televisão revista.

Depois teremos a entidade que substitui a RTP: uma empresa muito pequena, leve, sem meios, sem produtores, sem realizadores, sem actores, sem estúdios, sem câmaras: tudo é encomendado no mercado, incluindo os programas de informação. É o que sucede com o canal de serviço público franco-alemão ARTE.

Esta nova empresa teria a seu cargo a orientação da programação, a gestão do espaço hertziano do Estado, a encomenda de todos os programas. O seu financiamento seria garantido pelo Estado. Não teria publicidade comum, apenas patrocínios.

Este texto constitui, no essencial, a intervenção realizado no colóquio"Audiovisual - Que estratégia", iniciativa do grupo parlamentar do PS que teve lugar na AR em 25/06/2001.