Eduardo
Cintra Torres
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O Regresso da Praça Pública |
O Praça Pública foi uma das novidades da SIC na TV portuguesa no início dos anos 90. O povo saltava de rompante pelo ecrã fora e obrigava o poder a estar alerta. Além das eleições, o cidadão comum passava a exprimir a sua escolha, todos os dias, na TV. As obras que não acabam, a falta de respeito de autarcas, empresários e governos pelos mais fracos - essas coisas comezinhas do controle do exercício do poder faziam-se agora com a ajuda do ecrã. A actividade política tinha fatalmente de alterar-se perante o novo meio de comunicação de massa.
Muitos políticos tremeram com o Praça Pública da SIC - não por causa do "populismo" e do "mau gosto" (as duas expressões que vêm a calhar quando a classe média e as elites temem o que vem "de baixo"), mas porque temiam o escrutínio público. Perceberam que muito pior do que um grupo revoltado numa Assembleia Municipal é uma voz certeira na televisão.
A mudança de Governo em 1995 do PSD de Cavaco Silva, ícone de autoridade democrática, para António Guterres, arauto de diálogo democrático, relaciona-se com a nova maneira de fazer política que passa por uma atenção maior às expressões de opinião pública nos meios de comunicação. O PSD já não foi a tempo de mudar. A par do desgaste no poder, havia também desacerto entre a forma de fazer política e a forma como o país começava a expressar-se nos meios de informação. Estes, em especial a SIC, abriram-se às formas emergentes de recurso aos meios de informação para protestar.
O processo não foi apenas transparente: recorde-se Armando Vara nos bastidores da Ponte 25 de Abril organizando o buzinão que simbolizou a queda do cavaquismo. E Estrela Serrano, em tese académica, revelou como a estratégia comunicacional do então Presidente da República Mário Soares a partir da sua reeleição visava desgastar o governo de Cavaco e encontrar pontos de fricção entre a governação e a sociedade. A tese desta assessora de Soares durante dez anos comprova o que todos sabíamos por intuição: a acção política de Soares visava derrubar Cavaco.
A prática política e a prática jornalística entrelaçaram-se então como dois braços de uma trepadeira. Hoje, à distância de quase uma década, podemos comparar a Praça Pública da SIC com as presidências abertas de Soares. Cronologicamente, começaram no mesmo momento político. Mas mais: as presidências abertas de Soares coincidiram nos efeitos, talvez nos objectivos, e muitas vezes na forma com as notícias do Praça Pública. As presidências abertas eram "hipóteses de reportagem" do tipo das do Praça Pública. Com uma única diferença importante: na presidência aberta o repórter de serviço era o Presidente da República.
As queixas eram as mesmas. Em ambos os casos dava-se a voz a um dos lados da notícia e parecia não haver o princípio do contraditório: os atacados não estavam lá para se defender ou faziam-no no papel de culpados.
Quer o Praça Pública quer Soares encontravam temas "fracturantes" que incomodavam o poder cavaquista. Se essa é uma missão do jornalismo, era-o pela primeira vez da presidência. Em ambos os casos a consequência política da comunicação era o desgaste do poder, a irritação com o Governo. Ainda antes de eleger um presidente (o do Benfica), a SIC mostrava que a TV pode contribuir em muito para derrubar governos.
O Governo PSD caiu e as coincidências prosseguiram: Soares não voltou a fazer presidências abertas e o Praça Pública desapareceu da SIC; depois, Jorge Sampaio não fez presidências abertas do tipo soarista (o Governo é do mesmo partido) no primeiro mandato e também a SIC continuou sem Praça Pública.
Várias vezes escrevi que o Praça Pública não deveria ter acabado e que as razões por que havia terminado eram suspeitamente políticas. Emídio Rangel declarou repetidamente que terminara o Praça Pública porque o modelo estava esgotado. |