Eduardo Cintra Torres

Na Televisão, como Uma Tragédia Grega


As condições e o lugar da tragédia de Castelo de Paiva proporcionaram que, ao fim de poucas horas, todos sentíssemos que caberia à televisão e só a ela o papel de organizadora máxima da forma como iríamos ter a percepção da mesma. Foi a operação televisiva que estabeleceu o calendário da acção política e até de alguma acção operacional. Transferida para a TV, a tragédia teve o que muitos espectadores, familiares, jornalistas e mirones exprimiram: a dimensão do espectáculo. O espectáculo da tragédia, espectáculo que se perde na noite dos tempos. Não se lhe pode fugir.

1. A geografia favoreceu a transmissão televisiva. O vale do Douro é um anfiteatro. Ora, o anfiteatro é o lugar da tragédia. Este lugar chama por câmaras de televisão.

2. Um rio é mais do que um rio: é ao mesmo tempo o símbolo da renovação e da morte. E logo o Douro, e logo este Douro! Ele não se deixa domar, não mostra o leito, não deixa sequer o olhar fixar-se duas vezes nas mesmas águas. O rio chama as câmaras de televisão.

3. Uma ponte é mais do que uma ponte. Liga as margens, os dois mundos que há em que cada lado (neste caso até políticos, PS, a norte, PSD a sul). Mas isso é pequeno quando comparado com o significado universal e profundo duma ponte: a passagem da terra ao céu, da contingência à imortalidade. O simbolismo da ponte está espalhado por actos, conceitos, teorias, imagens da pintura e do cinema. A ponte chama as câmaras de televisão.

4. A forte simbologia explica que os governos caiam nas pontes: o buzinão de Cavaco Silva e a queda da ponte de Guterres. Não é uma simples imagem. É uma recorrência da simbologia profunda da ponte: se não é possível passá-la ou se, mais grave ainda, a ponte cai arrastando a morte, termina a mediação da governação. A TV mostra o buzinão e mostra os apupos: caem governos.

5. A tragédia é o destino que não se escolhe: no momento da queda da ponte, o Rio engole um grupo de gente feliz de regresso a casa. Aquele autocarro, que como que se vê em imagens cerebrais caindo ao Rio, transformou a quantidade trágica numa qualidade trágica. A TV reconstrói digitalmente a tragédia.

6. O destino não se altera, o rio não deixa. Não há mergulhadores que vençam a força e a escuridão, nem mesmo quando as barragens tentam domesticar o elemento Água. As imagens em directo têm a dimensão trágica.

7. Há oráculos que prevêem as tragédias. A TV mostra-os. O autarca, o relatório, ignorado, um jornalista com um artigo antigo, populares que falam do medo da travessia e de intuições que tiveram. Antecedentes da tragédia recordados e mostrados pelas câmaras tecem em argumentos os caminhos do destino, juntando-se como as águas dos dois rios.

8. Nas margens do anfiteatro os espectadores são o coro que as câmaras e os microfones mostram e ouvem. Porque veio aqui? «Vim ver se aparecia algum cadáver.» Este não tinha familiares no fundo do rio ou do mar. Mas não é só ele. Seremos todos? Porque nos mostram as câmaras a descida dos mergulhadores ao inferno das águas do Douro? Porque traz notícias dos cadáveres? Porque mostraram corpos encontrados? Aristóteles há dois milénios sobre a tragédia: «obtemos prazer quando contemplamos imagens, o mais precisas possível de coisas que em si mesmas são desagradáveis de ver, como as figuras de animais horrorosos e de cadáveres.»

9. O coro são os familiares que a autoridade não deixa chegar-se lá abaixo, ao palco dos poderosos. Nos primeiros dias o coro revolta-se no anfiteatro contra o desprezo a que o poder o vota. O poder vê as imagens na TV e chama a si o coro.

10. E os personagens principais, quem são? No primeiro dia, havia mais políticos que câmaras de TV, sentidos pêsames por entre dois telemóveis e declarações políticas mascaradas de apolíticas. O palco cheio. Os familiares para lá das cercas. Um espectador da TVI escreveu que o local da tragédia era um «espectáculo onde os personagens principais» eram os políticos e os «personagens secundários» eram os mortos. O escândalo na assistência nacional e mundial foi grande demais e os políticos passaram a um moderado recato, entrando em cena a horas certas. Antecipando-se, Jorge Coelho saiu de frente das câmaras antes de ter de ir ao local. Afastou-se do local da tragédia, deixando a outros os apupos em directo, e todos falaram em dignidade.

11. A correlação entre a actividade política e a actividade televisiva é total. A tragédia transbordou das margens do Douro. A política implodiu e explodiu em Entre-os-Rios. Durante uma semana, a Lisboa política ficou mais pequenina que a aldeia da Raiva. Era lá que a televisão estava.

12. Tal como nos tempos antigos toda a cidade se envolvia na representação da tragédia, também agora ela foi de todos, pela rádio e pela TV. O Estado assumiu o seu papel. Os meios de massas esforçaram-se por dar toda a informação, a que deviam dar, alguma que não precisavam dar e até uma ou outra que não deviam dar. Mas reconheça-se com espanto: há gente que para passar além da dor tem de chorar perante as câmaras. A TV, na maioria das vezes, tem o consentimento de quem mostra o sofrimento.

13. A TV herdou da rádio a função de organizar as tragédias, dando factos e interpretações para os espectadores gerirem eles mesmos as suas emoções e conhecimentos dos factos. A TV é má quando, em vez de dar factos e interpretações, faz ela própria as emoções, quando adjectiva o que vemos e sabemos. Aconteceu poucas vezes em Entre-os-Rios.

14. A tragédia, como o luto, foi nacional. A TV encarregou-se de a formatar. Quando duas mulheres foram deitar cravos ao Rio, as câmaras estavam ao lado e alguém mais diligente foi até mudar a posição de uma das senhoras para a encenar melhor na cenografia.

15. A TV multiplica a compaixão, compaixão nascida da consciência de que os males que acontecem aos outros também podem suceder ao próprio. A televisão sabe. A TVI abriu uma conta bancária para as famílias das vítimas. A multidão entra na tragédia. Gente vem de longe para ver o palco.

16. A tragédia, na TV, tem acção, organização dos factos, peripécias (as coisas que correm ao contrário do que se espera), reconhecimento (o conhecimento das coisas que se ignoravam), sofrimento, horror (a queda da Ponte) e morte, infelizmente verdadeira. A tragédia na TV tem organização: as cenas às horas esperadas (as operações que se fazem para a TV, as horas a que começam, as declarações à imprensa às horas TV).

17. Corpos surgem na Costa da Morte, nome de tragédia. Quando termina a tragédia? Para os mortos terminou logo ali no Rio, para os vivos começou então. Mas as tragédias muito longas cansam. A TV, servindo espectadores cansados, decidirá por si quando terminá-la, mesmo sem desenlace. Cansar-se-á. Só para as famílias de luto e os paivenses sem ponte o pesadelo continuará.