Eduardo Cintra Torres

As Lágrimas Politicamente Incorrectas


Se há repórteres sem preparação para situações como as da ponte de Castelo de Paiva, também é certo que nem a protecção civil nem os bombeiros nem as obras públicas nem as autarquias nem as forças armadas nem o governo estavam preparados para enfrentar uma tragédia daquela dimensão. Todavia, a onda de críticas dirigiu-se contra a TV. Sobre o ecrã reapareceram as nuvens negras do jornalismo tablóide.

Tablóide? Lord Northcliffe, o fundador do "Daily Mail", o jornal de maior circulação no início do século XX, disse: "o jornal deve lidar com o que interessa à massa do povo". É dele, também, a famosa frase: "dar ao público o que ele quer".

O jornalismo tablóide faz parte da democracia. As ditaduras não o toleram: na de Salazar, era proibido destacar as notícias de crimes de sangue - pois se a Utopia era perfeita e pacífica sob a direcção do sublime Presidente do Conselho, como poderia haver crimes?

A informação tablóide interessa ao seu público mais do que a informação "de qualidade". A quem vive num bairro degradado ou convive com a violência ou não tem interesse nas questões internacionais, o tablóide dá uma dimensão da realidade que é mais vital do que a informação de mãos invisíveis.

Os jornais populares (primeiros "mass media") criaram públicos para a imprensa, trazendo para a leitura milhões de trabalhadores que não se identificavam com o "jornalismo sério" tipo "Financial Times". Os tablóides deram ao seu público o que ele queria saber, da mesma forma que o "Financial Times" dava ao seu público o que ele queria saber. Para públicos diferentes, jornais diferentes.

Muita gente julga que tablóide e mentira são uma e a mesma coisa, o que é falso, mesmo quando se imiscui na vida privada. Carlos e Camila, Diana e o capitão, as ironias displicentes de Filipe, as aventuras extraconjugais de Sara - tudo verdade: a família real, que para existir como tal só tem uma obrigação - "portar-se bem" - portava-se mal.

O filme "Man in Black" fazia-nos rir com tablóides que dão notícias loucas mas certas: todas as notícias do tipo "Fui raptado por um Extra-Terrestre" correspondiam à realidade relatada. Os homens de negro liam os tablóides para saber o que os extra-terrestres andavam a fazer.

Quanto à TV, a acusação de tabloidização manifesta-se na agenda de notícias sobre crimes e violência - as tais que interessam a uma importante fatia dos públicos e que não deixam de ser notícia por não interessarem às elites.

No caso das notícias da tragédia da ponte, algumas elites não toleraram que se mostrasse a emoção, a dor e as lágrimas das famílias. E porquê? Porque as lágrimas das famílias eram politicamente incorrectas.

Nunca vi uma crítica por se mostrar as lágrimas frequentes do Presidente da República, porque essas lágrimas são politicamente correctas.

Nunca vi uma crítica por se mostrar as lágrimas e as emoções dos desportistas que vencem ou perdem uma prova, porque essas lágrimas são politicamente correctas.

Nunca vi uma crítica por se mostrar as lágrimas do povo quando Amália Rodrigues morreu, porque essas lágrimas eram politicamente correctas: eram-no mais que todas, pois a pobre senhora teve a desdita de morrer a poucos dias das eleições e o seu corpo foi mantido em exposição na igreja e nos media por tempo dolorosamente indefinido. Nem as lágrimas, nem as imagens do cadáver foram criticadas. Tudo era politicamente correcto.

Essas são as lágrimas que as elites toleram. Mas as lágrimas dos familiares das vítimas de Castelo de Paiva não convinham ao poder. A dor dos que perderam os seus familiares era em si mesma uma insuportável acusação.

Eram lágrimas de revolta. A crítica de pessoas sem habituação ao discurso político faz-se através de frases emocionadas ou lágrimas. Ricardo Dias Felner citou (PÚBLICO,09/03) a entrevista da SIC a uma familiar, a D. Rosalina, que de forma emocionadíssima criticou, à sua maneira, a incúria do poder. Deveria esta entrevista à D. Rosalina ter sido censurada? E a frase extraordinária daquele homem a quem Sampaio apresentou condolências? Ele disse apenas: "Mas a tragédia já aconteceu" - e há mais crítica na frase que em centenas de artigos como este. Deveria ser censurado?

Quando se quer censurar as lágrimas politicamente incorrectas que vimos na TV quer censurar-se a liberdade da crítica que elas exprimiram. O que se pretende é calar o povo. Porque esta censura é a mesma que no princípio do século XX os intelectuais faziam aos tablóides e é a mesma que desde há décadas se faz à televisão: a TV não dá as notícias que as elites querem ver, dá outras! Quem não quer a TV tablóide não quer ver o povo a criticar, quer que sejam outros intermediários (políticos?, jornalistas?) a criticar, com lágrimas postiças ou domesticadas. Toda a gente fala do povo, mas quando o povo aparece no ecrã na singularidade dos seus indivíduos, é um ai Jesus contra a TV tablóide.

As críticas omitem que muita gente se exprime dando ênfase às emoções e não vê mal nenhum nisso. Os entrevistados pelas TVs em Castelo de Paiva não são os ingénuos que a vozearia anti-tablóide pretende fazer crer. São pessoas que sabem muito bem, pela sua experiência de espectadores, ouvintes e leitores, o que é a comunicação de massas no tempo em que vivem e que sabem muito bem o que significa enfrentar uma câmara e um microfone.

Será que estas emoções são politicamente incorrectas e que as das meninas e meninos das capas das revistas rosas são politicamente correctas? Todas são consentidas pelos entrevistados! Porque é que se criticam as primeiras e não as segundas? E porque não se criticam outras questões candentes do jornalismo, como sejam casos de subserviência ao poder político e económico e certas estranhas notícias favoráveis a políticos e a empresas?

Claro, claro, há exageros. É feio "entrevistar-se" uma criança - mesmo que esteja ao colo da mãe, mesmo que a mãe queira aquela entrevista. É repulsivo perguntar a quem perdeu nove familiares na tragédia "o que sente". Mas os exageros não devem originar uma imediata onda de coro contra a liberdade do povo se exprimir como quer e sabe. Eu não critico a emoção do povo na televisão, o que critico é a emoção da televisão. Ainda por cima, já vi e ouvi centenas de vezes na TV e na rádio a pergunta "O que é que sentiu?" a políticos, artistas e outras celebridades e nunca vi nenhuma crítica à pergunta nesse contexto - porque os sentimentos dessas pessoas são politicamente correctos. Mas quando o povo de Castelo de Paiva chora de raiva contra as elites do seu país... cuidado com ele.