Eduardo Cintra Torres

Meditações Tabloidianas


Lágrimas a mais? Directos a mais? Falta de gosto? Tabloidismo? A cobertura de TV da tragédia da ponte está no centro dum debate que pode interessar a todos os leitores-espectadores.

Pela primeira vez desde a normalização democrática, houve uma campanha destinada a constranger antecipadamente a cobertura jornalística dum acontecimento. Presidente, governo, Alta Autoridade: as instâncias do poder político e mediático procuraram limitar a liberdade de informação através de apelos sistematizados à "auto-regulação".

Na perspectiva de trabalhos anteriores das TVs, foram apelos exageradíssimos. À parte ligeiras falhas, as equipas RTP, SIC/SIC Notícias e TVI fizeram um excelente trabalho.

Quando há um coro de pedidos orquestrados, a auto-regulação deixa de ser auto-regulação. A pedido do poder, a auto-regulação transforma-se numa nova forma de conseguir a autocensura. A autocensura prévia.

Este elemento novo acentua a leitura ideológica e política que fiz na semana passada das críticas às lágrimas na TV de familiares das vítimas, tema que entronca com o do tabloidismo.

Reafirmo que o jornalismo tablóide cumpre funções informativas e sociais na democracia e é um direito que assiste aos seus públicos. À pergunta de José Vítor Malheiros no seu excelente texto de reflexão "Os tablóides ao serviço do povo?" (PÚBLICO, 20/O3) eu respondo: sim.

Portugal não tem, infelizmente, uma verdadeira imprensa tablóide por causa da História e do analfabetismo do povo. Não a havendo, a TV ocupou o seu lugar. Ao cumprir a sua natureza de mass media, a TV teve de dar notícias às massas. Para as elites é insuportável que os meios de massas façam o possível por serem de massas, mais do que das elites. Toleram-nos se as campanhas e as notícias dos tablóides não as ameaçarem.

Há cem anos, O Século fazia muitas campanhas positivas. Era o diário mais popular, com tiragens superiores às de hoje, num país que tinha 80 por cento de analfabetos. A Colónia Infantil do Século resultou duma campanha "tablóide".

A campanha contra a sinistralidade assassina nas estradas é uma actualização dessas "cruzadas". A SIC começou a dar insistente cobertura de imagens de acidentes nas estradas e a mostrar loucuras de condutores. Esta campanha tem um valor social superior à de muitas "Tolerância Zero": o enfoque dado pela SIC, que depois arrastou RTP e TVI, cria alerta público e uma nova categoria social nos condutores, a vergonha.

A força da campanha televisiva levou o "Diário de Notícias" a lançar a sua própria cruzada contra o flagelo. Curiosamente, o director, em editorial de 18/03 justificando a campanha, relacionou TV e imprensa para dizer que, perante as opções audiovisuais, "os jornais serão cada vez mais obrigados a conquistar o coração e a razão das audiências" com campanhas idênticas.

As elites e o poder político nunca precisaram de pedir auto-regulação (que existe) aos canais de TV nem criticaram as muitas imagens chocantes de sangue na estrada, mortos encarcerados nos carros, mãos frias tombando de janelas partidas. São imagens muito menos brutais que as de dois albaneses abatidos na Macedónia, vistos em "prime-time" em 22/03, mas são desagradáveis, e não apenas para as famílias das vítimas dos acidentes: se isso é TV tablóide, então viva a TV tablóide.

Ao contrário do sangue na estrada, a cobertura da ponte levantou a questão da privacidade e respeito das famílias porque os critérios ideológicos de partida são diferentes. Haveria na TV lágrimas "públicas" (por Amália, ou as de Sampaio) "e privadas" (as dos familiares de Castelo de Paiva). Eu julgo que também estas eram públicas porque eram consentidas e, até, eventualmente, sentidas como uma necessidade de exprimir um ponto de vista ao país. Se a D. Rosalina de Castelo de Paiva faz crítica política chorando não sei como apelar à auto-regulação e ao tabloidismo para a afastar do ecrã, porque é censura.

A mesma dualidade de critérios foi aplicada com os directos televisivos. Teriam sido exagerados em extensão e sem conteúdo jornalístico. Quanto à extensão, ela não foi comparada com a de outros directos. Mesmo na Guerra do Golfo, o directo do CNN nada mostrava horas a fio. Os directos dos estádios antes dos jogos não mostram nada de jornalístico. Vou ainda mais longe: em muitos directos em telejornais há repórteres que nada acrescentam ao que o "pivot" acabou de dizer. Todavia, esses directos não são criticados. Foram-no agora os da ponte porque as bitolas são diferentes. No caso da posse de Jorge Sampaio - cerimónia em que havia menos participação jornalística que no Douro - criticou-se o facto de as televisões terem interrompido (com critérios jornalísticos) algumas partes da cerimónia em directo que consideraram terem menos interesse para as suas audiências. Exactamente a crítica contrária à que se fez quanto a Castelo de Paiva.

As críticas aos directos são surpreendentes pelo facto de negarem à TV o que ela tem de mais vital. O directo da TV não é comparável ao do jornalismo escrito. Mostra o agora. Quando na narrativa do directo nada acontece... é porque está para acontecer. O directo mostra uma visão da realidade como ela acontece, sem censura, não reserva para os jornalistas e os poderes a totalidade das imagens.

O argumento final para condenar a cobertura televisiva da ponte foi o do gosto, argumento útil por ignorar a vertente político-ideológica ao recorrer a uma área subjectiva que parece não ter possibilidade de escrutínio - o gosto. O "bom gosto" e o "mau gosto", valores aparentemente eternos e pré-definidos.

Todavia, o gosto é uma ferramenta fundamental da distinção entre grupos e classes sociais. É uma categoria de distinção económica e política. Os gostos funcionam "como marcadores privilegiados da 'classe'". Diz ainda Pierre Bourdieu que a "rede das oposições" entre elevado e vulgar, o que é de bom gosto e o que é de mau gosto, etc, funciona como "matriz de todos os lugares-comuns (que se impõem tão facilmente só porque têm por si toda a ordem social)" e "tem por princípio a oposição entre a 'elite' dos dominantes e a 'massa' dos dominados", "fraca e desarmada".

Essa "rede de oposições" construída a priori pelos critérios contraditórios das elites esteve a trabalhar em pleno na questão da cobertura de Castelo de Paiva, nas questões dos directos, das lágrimas, do gosto, da auto-regulação forçada e do apagamento da questão político-ideológica que é subjacente a toda e qualquer cobertura de todo e qualquer acontecimento televisionado.