Eduardo Cintra Torres

Está no Ar o Big Brother III


O M/20 é o Big Brother em ficção, idealizado e formatado pela mesma produtora, a Endemol. Aqui temos o Big Brother num ambiente de bar, formato doutra produtora que a SIC nos promete para breve.

A série M/20, ou Maiores de 20< (RTP1, quarta-feira), pretende retratar um grupo de jovens adultos, já independentes, que se reúnem num bar, ponto de encontro e "lugar onde", tal como em Cheers - Aquele Bar. O primeiro episódio surpreendeu pela ousadia da linguagem televisiva numa ficção destinada a ampla audiência.

Comecemos então por descrever a forma, para chegarmos ao conteúdo, pois procurar uma é encontrar o outro. Há em M/20 uma atenção obsessiva no uso da câmara. Ela ciranda em alta velocidade de um para outro intérprete como nas reportagens de guerra e em algum cinema mas fora dos esquemas visuais da TV.

A utilização brusca da câmara e como se fosse os olhos de uma pessoa só é possível por uma razão prática muito concreta: as câmaras estão mais levezinhas! Antes da invenção do vídeo ambulante, não seria possível este uso frenético da câmara.

O recurso permite aumentar o ritmo e a velocidade da sucessão de imagens, em especial se se lhe juntar uma montagem em síncopes, como é o caso. Tratando-se de uma série de jovens activos, esta velocidade simboliza a vivência nas discotecas e a dispersão de atenções da vida para mil e uma coisas.

Além disso, esta técnica também faz da câmara um de nós, operadores de "homevideos" tremidos e bruscamente movimentados. Em M/20 pretende-se com isso fazer de nós, em casa, um deles, no bar. A série leva essa intimidade ao extremo de logo nos primeiros minutos do primeiro episódio duas das intérpretes falarem para a câmara dizendo para ela não se meter: uma delas até vira a "nossa cara" para o lado, empurrando a câmara com a mão.

M/20 também usa a câmara para o frente-a-frente com o espectador. Os intérpretes não só mandam umas bocas para a câmara como, em cenas interpoladas, sentados num sofá, falam directamente para o espectador.

A criação do ambiente através de recursos técnicos serve-se ainda duma montagem igualmente movimentada, com cortes abruptos na narrativa para introduzir cenas de rebuliço e de rebolanço, quer dizer: "um pouco mais de sexo, por favor, nós somos modernos" - cenas a preto e branco, como os anúncios do Martini, e com música "a abrir". O preto e branco acrescenta "glamour" ao sexo.

O efeito de a câmara ser "um de nós" no bar prolonga-se com os intérpretes olhando-nos e falando-nos. É um recurso técnico que se arrisca a banalizar a narrativa. A interpelação do espectador transforma-o num participante demasiado interactivo da ficção. Ora, o espectador pretende assistir, ser "voyeur", pretende ser um intruso sem que lho digam.

Partindo da forma já vamos entrando no conteúdo, de tal forma eles estão ligados. Isso é bom sinal, significa que a série adequou com êxito, um ao outro, os dois ingredientes da receita - forma e ideia.

E qual o conteúdo? Aqueles jovens parecem mais holandeses traduzidos para português do que portugueses vernáculos. Não deve ser alheio a esta impressão o facto de M/20 ser um formato da Endemol com tradução para a língua de Luís Pacheco e Margarida Rebelo Pinto. Todavia, ficção é ficção: mesmo que hoje aquelas personagens sejam pouco portuguesas, a própria ficção as fará portuguesas. A televisão torna as sinédoques obrigatórias: os jovens de M/20 são postos a representar o todo da juventude portuguesa.

No primeiro episódio, o sexo é o zénite da existência dos jovens. Falam da "legitimidade" do sexo, quer dizer, discutem a "quantidade" de amor necessária para o fazer. A personagem homossexual diz que é zero, outras têm versões mais ou menos quantitativas do amor envolvido numa relação.

Como foram caracterizadas as personagens? Pelo que fazem na vida? Pelos seus interesses ou sonhos? Não. Definem-se pelas suas relações amorosas e sexuais: uma anda com um homem casado há três anos; outra, numa relação com três anos, apanha o parceiro a enganá-lo; outras dão umas quecas, como eles dizem, variando apenas, mais uma vez, a quantidade; o homossexual não se importa de levar porrada e de, em consequência, ser violado pelo próprio companheiro.

Os dilemas dos personagens passam, ligeiros, por nós. Deve perdoar-se ao parceiro que nos trai? Deve manter-se uma relação com um homem casado? Levar porrada é suficiente para cortar uma relação? Nada se discute mais que breves segundos. O conteúdo, tal como a forma, passa velozmente. Ao contrário da obra de arte, e até de muitas séries televisivas, o quotidiano e a singularidade dos sentimentos e situações não serve neste M/20 para se atingir a universalidade do humano. Atingem-se novos estereótipos da sociedade actual.

A série não é apenas o que mostra. Nada há que seja apenas o que mostra. Fingindo que não, M/20 tem lições a dar-nos: indica-nos que, tal como a estética da série, a superficialidade e inconstância das relações, das amizades e das conversas podem ser valores em si; que o percurso individual de vida é totalmente independente da vida sexual e emocional; além disso, a homossexualidade masculina é, pela primeira vez na ficção televisiva em português, apresentada como natural e integrada.

Mas esta modernidade passa por uma surpreendente actualização de comportamentos sociais geralmente considerados os mais reaccionários pelas mesmas pessoas que ali se retratam. Por exemplo, quando o homossexual aceita ter levado porrada e continua a relação com o violador. Ou quando aquela que encontra o seu homem com outra no "seu sofá", como ela diz, o perdoa nesse mesmo dia, sorrindo para as flores que ele lhe deixa na porta de casa. As aceitações da violência caseira e da infidelidade seriam consideradas reaccionárias se mostradas numa telenovela.

Voltemos à forma e ao conteúdo: eis um grupo de jovens que se encontram sempre no mesmo lugar, falam apenas com ligeireza de relações íntimas, se sentam num maple olhando para a câmara (instrumento com o qual têm no bar uma relação especial) e fazendo as suas confissões. Os leitores reconhecem? Sim, é o Big Brother. O M/20 é o Big Brother em ficção, idealizado e formatado pela mesma produtora, a Endemol. Aqui temos o Big Brother num ambiente de bar, formato doutra produtora que a SIC nos promete para breve. São pessoas do mesmo grupo etário e social, são os mesmos temas, a mesma conversa, a mesma presença da câmara, as mesmas "actividades" (lúdicas, apenas lúdicas, de convívio e de sexo), a mesma superficialidade, o mesmo palco, o mesmíssimo confessionário, as mesmas confissões.

É o mesmo Big Brother, em reciclagem: da novela da vida real para a vida real em novela. Os géneros televisivos são, cada vez mais, feitos de plasticina.