Eduardo
Cintra Torres
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Famílias de Médicos e Assassinos |
Em Portugal, os Sopranos permanece um fracasso de audiências, apesar das boas referências na imprensa. Tal facto resulta, em primeiro lugar, de a auto-promoção da RTP não auto-promover; e, em segundo lugar, resulta de a série ser rejeitada não só pela maioria sociológica dos portugueses como pelo próprio público a que deveria destinar-se. A produção generalista portuguesa tem deseducado o público de televisão mais exigente que já não consegue acompanhar uma boa série, mesmo divertida e electrizante como os Sopranos. Quer dizer: as elites e os grupos sociais capacitados pela sua educação para apreciarem os Sopranos ignoram a série, preferindo ver as telenovelas e outros programas destinados em primeiro lugar à maioria sociológica. Das que vêem televisão, as classes "altas" (?) preferem ver as Noites Marcianas ou o Big Brother a ver os Sopranos. Pois que façam bom proveito. O mesmo fracasso e pelas mesmas duas razões tiveram ou têm outras quatro séries de altíssima qualidade de que a RTP comprou os direitos de exibição: ER (Serviço de Urgência), The Royle Family, Third Watch e Futurama. No caso de ER a falta de estratégia de programação da RTP foi desastrosa, acrescentando-se-lhe, ainda por cima, interrupções na sequência de episódios, mudanças de dias e horas de emissão, intervalos gigantescos, etc. - ao ponto de se destruir o gosto em ver a série. Nesta altura ER não está em exibição. Desapareceu como apareceu: sem se dar por isso. ER é um portento de virtuosismo televisivo. A capacidade desta série, bem como de outras (até das telenovelas), centra-se no conto de muitas estórias em simultâneo. Tal estratégia narrativa filia-se na novela da imprensa popular do século XIX e tem um poder crescente sobre os nosso cérebros divididos por mil e um interesses e solicitações. Filmes como Magnólia estetizaram ao máximo esta tendência e esta técnica narrativa em que a TV é soberana. Há semelhanças técnicas entre a narrativa de ER e a de uma telenovela, mas as diferenças nos resultados são abismais: a velocidade, o entrosamento das estórias paralelas ou cruzadas, a focagem total no serviço de urgência, a galeria de tipos (e de situações sociais) que passam pelas macas e camas do hospital, a concentração da narrativa, etc. Quem fez a centragem de ER em George Clooney não foi a própria série, mas os mass media parasitas da TV e o próprio público. Na verdade, Clooney manteve-se sempre um par entre pares, no seio de uma galeria de «personagens principais» muito vasta para uma narrativa deste tipo. Enquanto os Sopranos e Royle Family se centram em unidades familiares alargadas, em ER a única "família" existente é a dos empregados do serviço de urgência do hospital (médicos, enfermeiros, administrativos, etc): as famílias verdadeiras de cada um só existem quando são problemáticas, de forma a que a identidade do personagem se active apenas no serviço de urgência. ER desenvolveu ao mais alto apuro narrativo e técnico, nomeadamente na montagem e nas cenas mais aflitivas de assistência hospitalar, o caminho antes desenvolvido por Hill Street Blues, trilho também seguido com grande brilhantismo pela série Third Watch, também em exibição actualmente na RTP1. Mas Os Sopranos introduz uma revolução na ficção televisiva: utiliza o processo da série de situação familiar para tornar os espectadores íntimos de uma família especial: os Sopranos são uma mafia local. Estamos longe dos Al Capones. Aqui, a filha vai para a universidade, a D. Carmela Soprano faz chás de sociedade e Tony Soprano (tal como Robert de Niro num filme recente) faz psicanálise. Entramos na intimidade dos Sopranos e eles são (nem podiam deixar de ser) iguais a nós em muitas coisas, na sua humanidade e inserção na sociedade «normal». É por isso que quando o sobrinho mafioso (que vemos tentando ser actor numa cena de Rebel Without a Cause) corta um tio aos bocados com uma serra eléctrica, ou quando Tony Soprano executa um rapaz que cometeu um erro ao tentar ser um bom mafioso, as imagens são de uma brutalidade inesperada, como se alguém nosso conhecido ou íntimo na vida real matasse alguém a sangue-frio à nossa frente. É o que acontece nos Sopranos, novela duma família mafiosa. Aquele Tony Soprano assassino é o mesmo que vemos tentando ser um bom pai, conversando com a mulher (uma atenta leitora da boa ficção de massas) ou soçobrando a mais uma crise de angústia. O nosso dilema como espectadores é o mesmo da analista de Soprano: ela sabe quem ele é, entra em obsessão com este doente, mas não consegue afastar-se da beira do abismo. Os simpáticos subúrbios onde vivem estes mafiosos apresentam a velha dualidade do Bem e do Mal sem nos deixar separar um do outro, pois apresentam-se nas mesmas personagens. A série evolui na normalidade dos processos narrativos das séries e das novelas, mas é aí que a perversidade se incrusta, porque a série "não devia" ser assim, "devia" separar os "bons" e os "maus". Os dois principais personagens da série partilham connosco a inquietação perante esta dualidade: Tony Soprano e a sua analista. Ele tem crises de angústia porque o seu Eu se divide entre a sua inserção na sociedade normal e a sua actividade como chefe mafioso, extorcionista, ladrão e assassino. Ela entra num processo paralelo porque se sente atraída pelo lado "desviante" do Soprano, precisando de se fazer analisada por um colega (representado pelo realizador Peter Bogdanovitch). Este menu é servido com qualidades imensas: a caracterização dos personagens, a construção de cada episódio, a colocação das sessões de Tony na analista como fulcro da compreensão da série, o humor das situações e das falas, a banda sonora, a qualidade da interpretação. Depois de ER, Sopranos é a melhor série de ficção norte-americana em exibição na televisão portuguesa e, seguramente, uma das melhores séries da última década. |