Eduardo Cintra Torres

As Televisões Gémeas


A coincidência de haver gémeos separados à nascença na nova novela da TVI, Olhos de Água, e na primeira novela da SIC, Ganância, parece de propósito para interiorizarmos que os dois canais são iguais, têm a mesma estratégia e até contam as mesmas estórias.

Gémeas que nasceram do mesmo concurso público, SIC e TVI assemelham-se agora nos objectivos e nas acções e digladiam-se como Rómulo e Remo, nomes, aliás, escolhidos para simbolizar os gémeos de Ganância.

Obrigadas a servir a maioria sociológica, irmanam-se nos processos: perante o êxito das novelas anteriores da TVI, a SIC teve de dar o passo de substituir em "prime time" as novelas da accionista Globo por uma produção portuguesa. Tão diferentes até há seis meses, os dois canais são afinal gémeos. Será na telenovela que essa irmandade se revelará mais profunda. A novela portuguesa será o programa estruturador do "prime time" de ambos os canais nos próximos tempos, talvez anos; nessa função, já substituiu na TVI a passageira novela da vida real, o Big Brother, espécie de irmão mais novo, e, na SIC, a irmã mais velha, a novela brasileira.

A telenovela serve a agregação de públicos e a trapalhada que é hoje o "prime time" dos dois canais: enfia-se a qualquer hora, repete-se, corta-se, atrasa-se, adianta-se, estica-se, altera-se. Está na sua natureza a flexibilidade; a mudança, o "estar pronto para tudo" é uma das riquezas da novela, adaptando-se como uma luva ao meio televisivo.

As actuais novelas revelam-se inscritas em estratégias comerciais das duas televisões gémeas. A TVI, da MediaCapital, possui produtos mediáticos que se vendem uns aos outros; a telenovela é uma fábrica de informação para esses meios de massas. Com a SIC é o mesmo, mas acrescentando-se a estratégia brasileira com a introdução de personagens, paisagens e actores de novela brasileiros. As duas novelas espelham o fluxo dos canais, com os seus personagens percorrendo os episódios: por exemplo, Herman José na Ganância.

É, pois, tão legítimo olhar as duas TV como gémeas como o foi aos autores das duas novelas usar esse mito antiquíssimo. Todas as culturas e mitologias testemunham um interesse particular pelos gémeos, fenómeno com um valor intenso; são sangue do mesmo sangue, dois frutos do mesmo instante, diferença na igualdade e igualdade na diferença. Os gémeos - em mitos ou novelas - exprimem sempre uma dualidade conflituosa ou equilibrada. Em qualquer caso, simbolizam uma contradição não resolvida. É assim com Rómulo e Remo, com Castor e Pólux e com as suas irmãs gémeas de outro parto (mas geradas na mesma altura!) Helena e Clitemnestra.

Nas duas telenovelas, a contradição não resolvida é herdada pelos gémeos da tragédia inicial da separação. Curiosamente, em ambas a origem da diferença é o 25 de Abril.

Nos Olhos de Água, as gémeas vêm de Angola, onde viviam com os pais na felicidade da roça, no grande espaço, na promessa dum futuro radioso à vista de grandes colheitas e grandes mamíferos. O 25 de Abril estragou tudo, por causa da descolonização. Separadas, as gémeas retornadas vêm a crescer em ambientes familiares distintos. Campo e cidade. Irmã rica, irmã pobre. "The Prince and the Pauper." A diferença é estabelecida pela história e pela sociedade, mas elas são iguais, por dentro e por fora: boazinhas, amigas. Gémeas verdadeiras.

Já Rómulo e Remo, aliás Rodrigo, foram separados porque o pai das crianças não assumiu o 25 de Abril socialmente. O puto rico levou a moçoila camponesa para Roma ("Foi Uma Festa Linda, Pá!"), mas a gravidez trouxe-lhe a luta de classes ao portão, quando ela aparece com barriga de nove meses e manda chamá-lo. O incauto jovem pai, cujo pecado fora apenas o de ceder aos calores próprios da idade, hesita em casar. Em desespero, à pobre camponesa só lhe faltou gritar: "Não foi p'ra isto que fizemos o 25 de Abril!" E, num daqueles incidentes absurdos em que, para nossa felicidade, as novelas são tão pródigas quanto a vida, fica ele com uma criança nos braços e leva-a para casa sem saber que ela trazia no ventre outro filho. Gémeos falsos. Ela pira-se para o Brasil com o bebé nº2. A contradição não resolvida dum "25 de Abril social" é responsável por esta separação à nascença.

Na lenda grega, Castor é guerreiro, como o Rodrigo da SIC, e Pólux é praticante de boxe, enquanto o Rómulo da Ganância é praticante de capoeira. Rodrigo crescerá rico, Rómulo, arrimando a Lisboa pobrete mas alegrete, vem do Brasil, filho adoptado dum tendeiro da Baía especializado num bacalhau revisionista. Ao contrário de Luísa e Leonor - boazinhas -, Rodrigo e Rómulo assumem outra faceta da mitologia gemelípara: um é bonzinho e outro é mauzinho. Mas a esperança de que o mau Rodrigo expie pecados e nele viceje o bem que está latente.

Passaram-se 25 anos e as contradições permanecem por resolver. Será na TV, via telenovela, que pobres e ricos da maioria sociológica se reencontram, resolvendo estas contradições sociais terríveis que o 25 de Abril "criou" ou "não resolveu".

O destino está traçado nas primeiras cenas de ambas as novelas. Luísa e Leonor cruzam-se à saída do elevador quando a pobre procurava emprego nas empresas da rica. Rómulo e Rodrigo, que também não sabem um do outro, são os vértice dum triângulo que se encontra em Isabel (Catarina Furtado). Todos têm que se encontrar: é preciso cumprir Abril, é preciso fechar as últimas chagas abertas por Abril!

Poderiam os gémeos da Ganância ser gémeos das gémeas dos Olhos de Água, tal como Castor e Pólux eram gémeos de Helena e de Clitemnestra? Não só poderiam como são! São barro da mesma História, marionetas dos mesmos destinos, personagens dos mesmos palcos.

O destino está traçado. Portugueses somos, está dito! Rómulo e Rodrigo voltarão a ser iguais, Luísa e Leonor voltarão a ser iguais, tal como a SIC e a TVI, nascidas no mesmo dia, filhas do mesmo parto e do mesmo 25 de Abril, voltaram, pela telenovela, a ser iguais.

SIC e TVI já se reencontraram, e assim será com o par de gémeos de cada telenovela. Castor recusou a imortalidade que Zeus lhe oferecia no céu porque o seu gémeo Pólux estava nos infernos. E, por isso, Zeus permitiu-lhes que ficassem entre os deuses - mas em dias alternados. Nas nossas telenovelas, também só no final saberemos como serão partilhados os bens terrenos (propriedades e noivos). Talvez em dias alternados, que é também a forma de vermos estas novelas gémeas.