Eduardo
Cintra Torres
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A Família Real da Televisão |
Embora num registo diferente de Sopranos, a série inglesa Royle Family (RTP2, sábados) tem semelhanças com a saga dos mafiosos. Ambas as séries giram em órbita de famílias suburbanas. No caso dos Sopranos, é uma família invulgar, de mafiosos, mas integrada na paisagem social americana e adaptando-se à mudança do século. A família Royle (o nome confunde-se, na pronúncia, com a "royal family") é uma família operária do centro da Inglaterra, vulgar, trabalhadora e séria, genuína e despretensiosa, vivendo o quotidiano e os seus minúsculos dramas e comédias num casa de subúrbio de uma grande cidade. Série de grande orçamento, de grandes "décors" e algumas acção, com banda sonora cuidada, os Sopranos traz novidade ao tornar-nos cúmplices dos mafiosos através do convívio com o quotidiano normal, americano, dos membros da família. A essência televisiva da série é tão americana quanto a família mafiosa. A Royle Family também é uma nação, a Inglaterra no seu melhor. A série pressupõe uma concepção de palco, não só pela singeleza dos cenários - tudo se passa dentro da casa dos Royle, especialmente na sala e na cozinha anexa -, como pela criação da narrativa, através do investimento na caracterização e na interpretação dos actores. A posição das câmaras é muito cuidada e essencial para capturar a caracterização dos personagens, enquanto a movimentação geral, a variedade de "décors" e as narrativas secundárias são irrelevantes e a banda sonora é inexistente. Royle Family representa a comédia de situação - a "sitcom" - num modelo apurado e refinado. Embora a tradição teatral se pressinta, ela não é evidente como nas "sitcom" americanas do tipo Archie Bunker, em que se filma uma representação num palco e os actores vocalizam como os actores de comédia. Em Royle Family, não somos espectadores num palco, antes nos sentimos dentro daquela casa como se lá estivéssemos. A forma inicial de muitos dos episódios introduz-nos no pequeno universo de uma família operária: entramos na sala dos Royle quando se liga o televisor na sala. Ao fazer de nós o televisor é como se este fosse uma janela espelhada. Não referi ainda o que que acontece na série, porque, em termos de narrativa vulgar, não acontece rigorosamente nada: o esquema, nesse aspecto, é semelhante a Seinfeld. Onde está a estória? A arte de Royle Family está em conseguir uma criação altamente satisfatória como se não houvesse uma narrativa formal televisiva. É como se a casa dos Royle fosse (mais uma!) semelhante à do Big Brother. Não há nada para ver, eles nada dizem de interessante, passam mais de metade do tempo sentados nos sofás (sempre nas mesmas posições), excepto o filho mais novo, sempre chamado a fazer pequenas tarefas caseiras. Só ao fim de algum tempo o espectador se interessa pelo que se passa na casa, pois precisa de conhecer as pessoas que lá estão dentro e como se relacionam entre si. Nesse momento, o desinteressante torna-se interessante. Royle Family é muito mais real do que o Big Brother pois recria uma realidade enquanto no programa da Endemol finge-se uma realidade. Mesmo na unidade tempo: Royle Family desenvolve-se quase sempre em "tempo real" enquanto o chamado "reality show" é uma montagem seleccionada do pouco que lá acontece. Na série Royle Family há um enorme talento na caracterização; criam-se módulos narrativos que terminam em cada episódio mas nos transportam para o seguinte. O argumento de Royle Family é como uma mola: cada volta da mola é uma unidade, mas ligada à anterior e à seguinte. Desde a conta do telefone a uma boca do genro, tudo serve para construir narrativa, para espelhar a vida dos espectadores na vida dos personagens. A economia de meios e de grandes acontecimentos resulta numa série minimalista, em que o mais ínfimo movimento ou palavra se torna importante. Falam das coisas mais ínfimas e íntimas da vida, sem relação aparente umas com as outras, e, dessa forma, falam de seres humanos numa integralidade raramente atingida por outras séries. A família é "alargada", como a dos Sopranos: além do pai e da mãe (Jim e Barbara) e dos dois filhos (Denise e Anthony), há o agora genro (Dave casou há poucas semanas com Denise), a sogra e os vizinhos, cuja filha quanto mais dieta faz mais engorda. Royle Family quase parece uma investigação etnográfica, sendo nós, dentro da casa deles, quem toma nota de toda as redes visíveis e invisíveis de comportamentos e relações, da atitude perante o trabalho, das opiniões sobre as grandes questões ideológicas da sociedade (homem-mulher, política, velhice, juventude, casamento, sexo, etc). A forma como é retratada a relação da família com a TV é dos aspectos mais verdadeiros da série (e justifica a referência já nela feita a uma comparação com os Simpsons). Tal como acontece com milhões de espectadores em todo o mundo, o televisor está sempre ligado, mas é quase e tão-só um instrumento de luz e som em movimento ao canto da sala. Raramente as pessoas ligam alguma coisa ao conteúdo dos programas. Mesmo quando se fixam no televisor, os Royles estão a pensar noutra coisa qualquer, como se depreende pelo diálogo que se segue a esses momentos de silêncio. Nesta série, ao contrário dos Sopranos, não há ninguém "de fora", não há polícias, psiquiatras, professores, lojistas. O mundo está todo contido na célula familiar e tudo o que se passa nele reflecte-se dentro das quatro paredes. Mesmo quando Denise e Dave se casam, a nossa partilha é toda feita na manhã do acontecimento, em casa, no quarto dela (o gineceu), na cozinha (o androceu) e na sala, ponto de encontro dos universos masculino e feminino. Muito divertida (a começar no trocadilho do nome), muito bem escrita e interpretada, esta é a verdadeira família real inglesa da televisão. Com uma lição para os apocalípticos que temem o poder "fascista" da TV sobre as massas: o único fascínio que o televisor aqui exerce é o da lareira acesa na sala; a televisão serve em primeiro lugar como instrumento de sociabilidade que a família usa, ainda antes de ser usada pelos programadores. |