Eduardo Cintra Torres

A Síndrome do Segundo Episódio


A TV não gosta de mostrar apenas como é à frente das câmaras. Vaidosa, autoconfessional, quer mostrar-se por trás das câmaras: a televisão de intimidade é também a televisão da intimidade da televisão.

A série Bastidores (RTP1, dias úteis) ficcionaliza o mundo atrás das câmaras: as relações amorosas e as relações rancorosas entre actores, produtores, autores e directores do meio televisivo e correlativos. Sexo & profissão, uma coisa só. A vida privada e a vida pública - das pessoas e da própria TV - confundem-se.

Bastidores retrata um ambiente hipócrita, isto é, inclui no retrato a hipocrisia dos próprios que fazem a série. Vejam, parece dizer, nós, os actores e fabricantes de novelas enganamo-nos uns aos outros, somos mesquinhos, invejosos, maus, traidores. Vejam também como a produção de TV é obrigada a ser igual ao fabrico de baldes de plástico - é uma fábrica de sonhos baratos.

A narrativa centra-se no arranque e desenvolvimento duma nova telenovela. Quem fica com os papéis, quem contracena com quem? E quem se deita com quem? Quem aparece nas capas das revistas? E quem trai quem? Os bastidores são propositadamente mostrados a contradizer o que se vê no palco-écrã; são uma "realidade" que estava escondida.

Mas, claro, esta série não é os verdadeiros bastidores, é uma ficcionalização dos bastidores. Mais do que revelar os podres da TV, denuncia algum fascínio pelo mundo mesquinho dos próprios que a fazem. Eventualmente, o espectador fica invejando o glamour da sacanice.

A série não retrata os males da indústria, retrata pessoas más e outras que até são recuperáveis. O "sistema" não é posto em causa, há apenas que saber viver nele com algumas regras. Algumas situações são tão extremas que o espectador é levado a duvidar do "realismo" e a ver a série só como ficção. No fundo, Bastidores apenas belisca os bastidores da TV.

Mas, se a sua versão dos bastidores não é necessariamente realista, cria a sua própria credibilidade. O primeiro episódio de Bastidores surpreendeu na desenvoltura da narrativa e na qualidade dos diálogos. As cenas eram como pedras dum mosaico, independentes entre si, mas formando uma imagem global. Os personagens ficaram desde logo tipificados, o que é, no género televisivo, uma característica desejada pelo espectador. Uma cena em que o diálogo entre "Afonso" e "Fernanda" era composto de monólogos (esta gente não ouve, apenas pensa em si mesma) revelava uma perícia de diálogo que raramente se vê na ficção televisiva nacional.

No primeiro episódio, ficámos a conhecer a produtora que anda com o argumentista, casado com a sua melhor amiga. Conhecemos a jovem boazinha escolhida para a novela e traída pela amiga com quem coabita e que lhe rouba o papel. Conhecemos os bastidores dum "teatro independente" que vive com dificuldades (qual não vive, oh, qual não vive?) e cujo director aceita contra vontade, para "salvar" a peça, ser actor na novela com a mulher, actriz desse teatro mas que deseja muito ir para a novela com o amante, ex-modelo, que ela consegue também colocar na peça do marido.

Apesar do absurdo de algumas situações, o episódio deu-nos o fresco dos carácteres habituais, todos bem definidos e com um papel pré-destinado: a má ambiciosa, a mulher enganada (único personagem exterior ao ambiente TV), o puro que se vende por uns dinheiros, a amiga enganada, o tolo Apolo, etc. Destacaram-se, entre os actores, João Lagarto e Filipe Duarte, e ainda Fátima Belo e Helena Laureano.

A montagem rápida não parecia de série portuguesa. Com os diálogos e o entrosamento dos personagens, a montagem fez do episódio uma promessa de uma boa série. Eis um universo bem ficcionado e com algum sarcasmo. Olhando de si para si, o écrã transformou-se num enorme umbigo; este argumento é o umbigo cínico, há muito conhecido dos filmes americanos sobre Hollywood ou das séries americanas sobre a TV.

Essa era a promessa do primeiro episódio - mas a história da TV diz-nos que o arranque raramente retrata uma série. Quase sempre acontece o que podemos chamar "a síndrome do segundo episódio".

A estrutura do fluxo televisivo e das séries deste tipo não aguenta a qualidade dos seus próprios primeiros episódios. Muitas vezes, o primeiro episódio de uma série dá-nos, ao seu modo TV, um fresco duma realidade. Os produtores, realizadores, actores, argumentistas concentram-se em criar nele uma obra boa, como se fosse a única e como se fossem julgados apenas por ela. Eles sabem que a série não estará à altura do primeiro episódio.

Vê-se depois que o primeiro episódio só serve de prefácio a um produto que é também industrial; o fulgor inicial perde-se porque a "maneira de ser" da TV não permite outra coisa. A montagem desacelera, o sarcasmo esfuma-se, o argumento concentra-se nas estórias pessoais arrancando-as ao espaço e ao tempo em que se incrustavam - por exemplo, a estória entre um argumentista e uma produtora passa a ser apenas a estória habitual entre um homem e uma mulher. Mantém-se o pano de fundo, mas já não há a relação vibrante entre o mundo e as pessoas que o habitam. Os personagens despem-se do mundo e sobram apenas os protótipos em que desde sempre estavam baseados - e que são iguais aos de outras quinhentas séries.

Os seriados deste tipo tendem a assemelhar-se às telenovelas. Ao segundo e terceiro episódios, começa a ser indiferente que a realidade de base sejam os bastidores de uma telenovela ou um subúrbio da Margem Sul ou uma aldeia da Beira. Só há personagens, não há "lá fora". As narrativas são as mesmas, e poderiam ser os mesmos muitos "décors" - interiores -, guarda-roupa, planos de corte, sequências de montagem.

A técnica proporciona que assim aconteça: é grande o peso que a construção técnica duma série televisiva tem sobre o próprio argumento. Bastidores organiza-se como uma "sitcom". Os exteriores só indicam início duma narrativa interior e nunca são causadores de narrativa. Deixa de haver mundo no argumento porque não há orçamento para mundo nas filmagens.

Os episódios subsequentes de Bastidores mantiveram mesmo assim algum ritmo na narrativa e na suspensão das diversas sub-estórias, mas a "síndrome do primeiro episódio" estava lá; se se mantiver a desaceleração e descaracterização do mundo em que os personagens-tipo se ancoram, Bastidores entrará na rotina habitual do fluxo televisivo.