Eduardo Cintra Torres

Comédia de Situação e Comédia de Caracteres


No Programa da Maria (SIC, quartas-feiras), Maria Rueff segue com passo certo a sua intervenção no Herman SIC: assenta-o nas caricaturas. Rueff é excelente na captura de personalidades, tiques, frases feitas, vocabulários, respirações, jeitos físicos, sotaques regionais e sociais. Absorve tudo e consegue criar caricaturas completas e lógicas de gente que a gente conhece, isto é, caracteres ou bonecos. A transferência do taxista Zé Manel do Herman SIC para o Programa da Maria exemplifica este aproveitamento da qualidade cómica primordial de Rueff.

É certo que as caricaturas beneficiam no "talk-show" porque o diálogo com Herman José, que faz muito bem a função de "low-profile" mas ao mesmo tempo incentivadora e introdutora do improviso, é um grande benefício para a comédia quando as pessoas têm graça; e também porque, em directo, o "talk-show" tem a vibração do agora, impossível de reproduzir numa série. Nesses "sketches" ao vivo, até o facto de Herman conseguir atrapalhar em directo Rueff, menos dotada para o improviso, consegue ser uma mais-valia cómica.

Mas o Programa da Maria tem excelentes caricaturas da actriz: o taxista, a empregada subalterna da RTP, que é a verdadeira presidente e directora de programas da televisão do Estado, as apresentadoras do Jornal Nacional, Manuela Moura Guedes (TVI) e do Curto-Circuito (ex-CNL), a tele-evangelista, e outras menos conseguidas mas mesmo assim engraçadas, como o russo que anda nas obras do Metro do Porto, o rapaz das entregas e a americana apresentadora dum programa de viagens. Uma escolha criteriosa das roupas, cabeleiras e adereços completa a qualidade dos disfarces.

Estas caricaturas organizam-se em dois compartimentos diferenciados: uma série de "sketches" construídos em torno do fenómeno televisivo e, ao lado, a criação de uma narrativa em torno do taxista e do prédio em que vive. Esta dualidade é negativa porque deste programa quase faz dois programas da Maria: por um lado uma comédia de situação (o taxista e o seu prédio, mostrado exteriormente em plano de corte, tal como nas comédias de situação), e por outro lado a comédia de caracteres, descendente da revista e que tantos e bons programas cómicos de TV originou em todo o mundo. A comédia de situação vive com a repetição de situações enquanto a comédia de caracteres vive da repetição de palavras, expressões, tiques e gestos. Ambos os tipos de comédia pretendem coexistir no programa de Rueff.

O programa procura compensar essa dualidade colocando na narrativa do Zé Manel várias situações relacionadas com televisão para misturar as duas formas de comédia: numa arrecadação do prédio vivem uns DOT; o sótão tem uns efeitos especiais a preto e branco e com "fantasma" (gags usados na TV portuguesa em 1980, no programa Querida Televisão, na RTP1); a vizinha do rés-do-chão é uma brasileira que trabalha para a SIC (será despedida esta semana?); noutro andar vive um casal de personagens mexicanos de telenovela que se queixam de as suas falas serem mal dobradas em português do Brasil; no quinto episódio, a casa do taxista é transformada em canal de "reality show".

Quase todo o restante programa se constrói em torno da TV: uma caricatura dos "tops" musicais, outra de TV Turismo, reuniões da TVI e da SIC (mas a caricatura de Emídio Rangel desapareceu entretanto); há o grupo de televiciados anónimos, a tele-evangelista, a RTP onde há pessoas literalmente em prateleiras e uma brincadeira em torno duma série da RTP, chamada aqui "Maiores de 19 anos e 3 meses". Num registo um pouco diferente, há uma cena em que estamos dentro de um cérebro (O que Nos Vai na Mona), inspirado num "sketch" de Woody Allen.

Isoladamente, parte dos "sketches" têm ideias interessantes ou originais: os televiciados anónimos, a tele-evangelista que bate às portas promovendo a oração pela TV ou o casal mexicano mal dobrado têm excelentes possibilidades; outros soam a "déjà-vu", como os que recriam os canais de TV, mas conseguem alguns momentos divertidos, em especial o que brinca com a RTP.

A caricatura de José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes sofre por duas razões: primeiro, porque ao desaparecer a caricatura de Rangel (e Margarida Marante?), desapareceu o contraponto e, portanto, a plenitude do humor; segundo, porque a comédia deste género deve pintar caracteres gerais, tipos, e não pessoas específicas. Ao fazer caracteres específicos, Herman José preferia esgotá-los em uma só aparição ou então transformava-os em tipos, como no caso da caricatura de Carlos Pinto Coelho: o boneco deixa de ser aquela pessoa caricaturada para ser um tipo de apresentador de TV.

Simulando a comédia de situação no Programa da Maria, o ambiente familiar do Zé Manel e a vida do prédio não enriqueceram a figura do taxista. Apesar de ser engraçado que ele seja casado com uma negra e que o seu filho Eusébio seja um sportinguista clandestino, esses elementos esgotam-se no momento e retiram alguma aura à figura. Ele deixou de ser o taxista por excelência, o carácter do taxista, para passar a ser o Zé Manel, personagem de "sitcom".

O ponto forte do programa é também, paradoxalmente, o que pode torná-lo mais distante do espectador comum: o facto de tudo girar em torno da televisão. Os criadores do Programa da Maria parece que já não conhecem o mundo fora do ecrã, da sua linguagem, da sua imagem, das suas estrelas. O programa e todo o seu humor formam-se em circuito fechado e há mesmo algumas "private jokes". Muitos espectadores deverão sentir-se a ver o programa como eu quando oiço um advogado a contar anedotas de advogados a outro advogado. O público em geral não tem que se rever sempre no humor sobre a televisão, mesmo que ela seja parte substancial da sua vida quotidiana.

Além da família do taxista, não há ali muita gente saída da rua, do mundo real. É provável que seja hoje mais fácil e "unificador" um humor em torno de coisas da TV (por esta chegar a toda a gente), mas o facto de haver uma grande insistência neste tipo de "sketches" acaba por criar um filtro na relação vibrante da comédia com a vida real, no riso como "uma espécie de gesto social". Aqui, não se goza na TV com as coisas reais, mas com as coisas como são apresentadas pela própria TV. Fecha-se o círculo sobre si mesmo. Cria-se alguma artificialidade que retira força de intervenção ao humor, até por limitar o objecto ao pequeno mundo televisivo, já por si marcado pela superficialidade.

Rueff compensa esse desacerto da crítica do humor face ao mundo dando corpo a algumas pessoas verdadeiras com que tropeçamos na rua, mas pelo caminho perde-se a gargalhada aberta e saudável que é tão importante em programas de humor.