Eduardo Cintra Torres

Pai Nosso Que Estais no Bar


«Reality show», «espectáculo de realidade»: os termos da equação parecem incompatíveis, porque um espectáculo é fantasia e relaciona-se com a realidade através de regras e códigos próprios. Na nomenclatura que a TV inventou, «espectáculo» é substantivo e «realidade» toma o lugar de adjectivo: a «realidade» qualifica a substância «espectáculo», este sim, a coisa verdadeira.

O espectáculo é a própria realidade do Bar da TV, tal como do Big Brother, mas há um espaço de «realidade exterior» neste espectáculo. As cenas familiares da concorrente Margarida Gomes com os pais são parte desse mundo real que bate à porta do bar.

Não sendo a realidade, o Bar da TV ou o Big Brother não são só o espectáculo montado nas «casas» e bar transformados em estúdios. São a terceira via - nem espectáculo nem realidade -, resultado da metamorfose que se tem vindo a operar em todas as facetas da vida.

O Bar da TV é real porque os concorrentes podem fugir ao guião e não se sabe o desfecho, mas é espectáculo porque tudo resulta dum guião: ideia-base, organização do quotidiano, calendário, horário, regras que obrigam a certos comportamentos, constrangimentos até do espaço. «Porque é que (os rapazes) não foram para outro quarto se têm dois?», perguntava a mãe da Margarida. Para dormirem na mesma cama, claro - eis a «realidade» do espaço à procura do «espectáculo» do sexo.

Mesmo o que não está no guião é reabsorvido no espectáculo, como a «intrusão» e manutenção forçada dos pais da rapariga no local até ao horário de maior audiência.

O espectáculo seguinte saíu dessa «realidade»: a cena familiar mostrada em directo com todo o despudor; a reunião fraudulenta com a falsa psicóloga «em privado» que todo o país viu; as camionetas pagas pelo produtor para arregimentar gente de Borba até ao balcão do bar, tal com se fez na política, de Salazar aos nossos dias; os borbenses exibindo cartazes e gritando «Margarida! Margarida!», quais herdeiros dos que há 20 anos gritariam «PCP! PCP!» pelas ruas de Borba.

A desconstrução da dualidade espectáculo/realidade prossegue na oposição jogo/seriedade. «É só um jogo», disse a Margarida aos pais e dizem todos os outros concorrentes dos «reality shows». (Como quem diz: «O contrário do jogo não é o sério, mas a realidade», mas isso foi Freud que escreveu.) Todavia, o Bar da TV não é apenas um jogo porque para os concorrentes está muito para além do lúdico, afectando as suas vidas presentes e futuras.

Toda a forma de vermos a realidade se desconstrói perante os nossos olhos. Durante um século só alguns visionários disseram que não há factos ou valores absolutos, só há interpretações, e que há uma «terceira dimensão» em todas as oposições simples em que se baseou a nossa vida. Agora é a própria cultura popular, a própria sociedade, quem nega a estabilidade e a autoridade desses conceitos sobre os quais vivemos desde há muito, como realidade/aparência, Eu/Outro ou até Bem/Mal.

A unicidade dos conceitos morais do cristianismo é a mais afectada por esta avalanche desconstrutiva em que a cultura popular agora assenta. A mãe da Margarida disse-lhe: «Onde estão os teus princípios?» «Abandonaste a Igreja?» «Não posso viver em Borba. Não posso ir ao supermercado, não posso mais ir à missa». A filha respondeu que mantinha princípios e nada fizera contra eles. Eis de novo a realidade desconstruindo-se: a filha acha que não fez nada, para a mãe conta só como a filha é vista: «Tu não sabes as imagens que eles estão a mostrar.» A imagem sobrepõe-se à realidade.

Entra no palco a corda sensível de Portugal, a atitude perante a Igreja. O programa tinha que resolver esta questão. Fê-lo tomando o partido da filha na bipolaridade cristianismo bom/mau, enquanto procura uma síntese.

A produção do programa trabalhou com muito afinco esta questão fulcral. Depois da ocorrência de terça-feira, a produção rearranjou as imagens para as mostrar na quarta. Nessa noite, vimos a mãe da Margarida em grande plano, com as faces vincadas por rugas e os cabelos caindo desalinhados. Vimos também planos de trás, só do cabelo: construia-se uma imagem diabolizada da mulher.

No final da montagem da narrativa da véspera, a produção atingiu o zénite da transformação da «realidade» em «espectáculo»: colocou em fundo, repetindo-a, a voz da mãe da Margarida com eco, dizendo «nunca mais te perdoo... tu escolheste...». Rugas marcadas, cabelos revoltos e voz do Além com eco: a produção do Bar da TV transformou uma mãe numa bruxa má. Transformou-a numa bruxa, recorrendo aos códigos da técnica cinematográfica desenvolvidos nos filmes de Walt Disney. O despudor é ilimitado.

Mas isso era insuficiente: na quarta-feira, o Presidente da Câmara de Borba chamou «conservadores e retrógrados» aos pais da rapariga (seus munícipes!) e a Margarida tocou no violino o «Hino de Nª Sra de Fátima». E fez mais: rezou o Pai Nosso, em directo, do Bar da TV. Jorge Gabriel gritou «Silêncio aí no bar!» e deu a mão a Lili Caneças e ao concorrente a seu lado. Baixou a cabeça em «recolhimento». Todos deram as mãos, no palco do bar e no balcão do bar. E a Margarida começou: «Pai Nosso que estais no céu...» O bar rezou o Pai Nosso que Jesus rezou «num certo lugar», como informa Lucas.

Momentos antes, Lili Caneças, feliz com a terceira demão que levou na cara, explicava que era normal que a Ana Raquel levasse um vibrador sexual para o programa - «o que é que vocês estavam à espera?» -, pois vinha da favela (Lili sabe que nas favelas se usam muito os vibradores sexuais) e que «a Margarida trouxe ao Bar da TV a palavra Jesus». Para sossegar audiências, compatibiliza-se a realidade vibrador e a palavra Jesus. A desconstrução é sempre uma nova construção.

No dia seguinte, a Igreja ratificava esta terceira via ao surgir nos écrãs o encontro da Margarida com «o padre Avelino». A Margarida está sentada num sofá. De costas para nós, no lugar do entrevistador - o mesmo de Teresa Guilherme ou Jorge Gabriel - está o padre Avelino, de que vemos apenas o recorte do hábito. Estamos no confessionário do «espectáculo» Big Brother ou Bar da TV transformado num real confessionário, o propriamente dito da Igreja. A Margarida como que se confessa ao padre e a toda a audiência, sentada no sofá. Eis a metamorfose da confissão dos católicos: não na igreja, não a do «reality show», mas terceira via. A Igreja dá a sua benção ao concurso: «o padre deu-me razão», disse a Margarida. Não deu razão aos pais.

Resolvido este problema fundamental com a benção da Igreja, o programa seguiu em frente.