Depois do drama da Margarida, o drama da Leonor com a filha e o ex-marido. A "realidade" das pessoas foi novamente encaixada para servir o "espectáculo" do Bar da TV. É tanta a adaptação ao espectáculo, que nos interrogamos até que ponto toda a "realidade" extraconcurso não passa de fabricação. Estes casos forçam relacionamentos humanos. Servem para exponenciar audiências. Para as garantir em primeiro lugar com continuidade, o Bar da TV busca as personalidades dos concorrentes para dar sentido à narrativa-espectáculo da realidade-ficção. É a essência destes programas. Quem vemos nós no Bar da TV (ou no Big Brother)? Os concorrentes como eles são? Como querem ser vistos? Como são mostrados? A TV consagra o Eu que se afirma pela sua relação com os outros mais do que por si mesmo. A personalidade da Margarida do Bar da TV esteve em perigo porque é católica praticante e afirma querer "casar virgem". A ida dos pais ao bar obrigou-a a confrontar essa parte de si com a parte que quer relacionar-se com a sua geração, mais "livre" ao ponto de se lembrar, como a concorrente Ana Raquel, de levar um vibrador sexual para um concurso e explicar à Margarida que serve para massagens faciais. Devido a esta divisão interior, a Margarida quis encontrar-se a sós com um psicólogo e a produção enganou-a. Esse momento foi tão horrível quanto a revelação da conversa familiar. Via-se a cara de hesitação da falsa psicóloga, uma argentina, ao embarcar no logro promovido ali por Ediberto Lima, que também hesitava se haveria de entrar para o local onde as duas tinham entrado. Entrou também. No dia seguinte, Jorge Gabriel, que grita sempre, mesmo quando está só a falar, disse que "o pior já passou para a Margarida". Como é que sabe não o disse, mas ele tinha de fechar a narrativa. Dois dias depois, disse exactamente o mesmo à Leonor. Durante o horário nobre do drama da Leonor era necessário exibir sentimentos para que o Outro acredite na sua sinceridade. A Leonor percebeu isso. Chorou muito e, a instâncias de Ediberto Lima, falou contra o ex-marido; uma outra concorrente, que não conhece de parte nenhuma a Leonor e muito menos o ex-marido, não só chorou baba e ranho como introduziu um novo elemento de estética televisiva: virou-se para uma das câmaras de TV da "casa" e falou directamente para nós, bem como para o ex-marido da Leonor, a quem insultou em directo. Todos os concorrentes de "reality shows" dizem que ali eles são eles mesmos. Como quem diz: isto é um jogo, isto é um espectáculo, mas nós somos reais. Ora o que é a realidade de uma pessoa no tempo presente? Aproxima-se muito do que a TV faz nestes "espectáculos de realidade". Se não estivesse próxima da realidade, a TV não ousaria fazer estes "concursos". O que conta hoje para o Eu não é o que ele faz, é o que ele sente. A afirmação produz-se através dos sentimentos e não da actividade (e do trabalho): o bar é apenas um cenário, não um vector do programa. "Gerido" pelos concorrentes, o bar deveria abrir às nove, mas às onze e meia ainda eles estão em directo sentados nos sofás da casa. Não é na acção, no trabalho, que os concorrentes se afirmam, é na relação entre si, nos sentimentos, pelo que é obrigatório captar essa essência no "fare niente", no sofá, e não em acção (trabalhando no bar). As "tarefas" só servem para os concorrentes espelharem a sua personalidade nos outros. A relação com as outras pessoas sobrepõe-se dentro do Eu à vontade própria, individual. O Eu existe através do Outro. A realidade torna-se ilegítima, é substituída pela virtualidade do seu reflexo: é o Narciso que se vê ao espelho, que se vê através do Outro. A mãe da Margarida mostrou que o que contava eram as imagens, não as acções da filha; o concorrente João disse que o que se passava entre dois concorrentes "é visível pelas câmaras", muito embora ele não saiba o que as câmaras mostram. Na verdade, o João considera que cada Eu terá que ser considerado pela visão do Outro, neste caso, literalmente, pela visão através das câmaras. A única preocupação dos concorrentes é a relação com os outros porque sabem que é a relação com os outros que faz o Eu, não os traços da sua personalidade única. Um falou na necessidade de que "o ambiente seja o mais grupal", oito votaram pela saída do concorrente com a personalidade mais vincada (como eles reconheceram) porque "ainda não se consegue relacionar com o grupo todo". Esse concorrente, o Hoji, disse ser o único que passou dificuldades desde tenra idade em Angola e que, por isso, precisou para sobreviver de reforçar a sua identidade contra a sociedade. É um Eu pelo Eu "à antiga". Por isso recebeu oito votos negativos. Rita, outra concorrente, adivinhou que iria ser nomeada para expulsão pela Leonor porque o primeiro embate negativo de sentimento da Leonor fora com ela: a Leonor nomeou quem na relação interpessoal espelhou em si mesma um aspecto negativo da sua própria personalidade. Tirando partido da raça de Hoji, a produção procurou a inexistente clivagem branco/negro entre os concorrentes para o favorecer. Recorreu a entrevistas de rua, a um extenso depoimento do próprio e até, mais uma vez, aos efeitos especiais: no final dum longo plano de Hoji à janela, "sentimentalizado" com banda sonora adequada, acrescentou no vidro - o espelho de Narciso - uma outra imagem de Hoji, mas sorridente, vencendo só consigo a adversidade. O Hoji é um inadaptado neste estranho mundo em que a pessoa julga afirmar o seu Eu reprimindo-o quando se amacia ao que julga ser o grupo. Uma concorrente disse dos seus dias no bar: "Eu fui Eu." Outra disse: "Sou Eu. Não estou a fingir." Ser Eu foi adaptarem-se aos outros. Para não serem expulsas. Por que precisam tanto os concorrentes de dizerem que são eles mesmos? Porque não têm a certeza. Porque ser Eu é serem a imagem que o Outro terá deles. Porque a própria personalidade, o próprio Eu, se desconstrói entre o seu Ser e a imagem que o espelho (os outros) lhe devolvem de si mesmo. A personalidade, na sociedade actual, adopta a faceta mais dependente do Outro, mais teatralizada, mais próxima do espectáculo, ao mesmo tempo que - por resultar mais dos sentimentos - se julga mais próxima de um Eu profundo. Nestes concursos não ganha quem tiver mais Eu individualizado, como Hoji, mas quem tiver um Eu que sobreviva ao aparentemente caótico relacionamento entre todos os concorrentes, caso de Zé Maria no Big Brother. A TV dá-nos alegorias involuntárias da sociedade em que vivemos. Não é outra sociedade, é a nossa, muito nossa, muito de agora. O mundo desconstrói-se em directo.
