Eduardo Cintra Torres

A Televisão Tem Destas Coisas


O ministro até estava bem disposto; estava com jornalistas. Respondeu com humor quando o repórter da TVI comentou a expressão que o secretário de Estado Arons de Carvalho usou para descrever notícias da TVI: "um nojo".

Mas José Sócrates começou a irritar-se quando lhe falaram da acção da Quercus por causa das salinas do Samouco. Começou a falar "à ministro", isto é, a dizer que o futuro terá amanhãs que cantam e um orçamento risonho para a Fundação das salinas. O repórter da TVI perguntou-lhe qual era esse orçamento. O ministro não esclareceu. O repórter insistiu. O ministro irritou-se, apontou-lhe o dedo, abriu os braços em posição de ataque e chegou-se à frente - a bem dizer, ameaçou-o de porrada. Não vimos o momento mais dramático da narrativa, porque a câmara foi desligada. Mas o episódio continuou quando o ministro, qual concorrente de "reality-show" em confessionário, disse, falando de novo para a câmara: "fui malcriado". Eis o que acontece às big estrelas e aos big ministros que se estão sempre à frente das câmaras: falam demais e depois o assunto tem de ser tratado no confessionário! A televisão tem destas coisas. A sua linguagem própria é, em certos aspectos, comparável à linguagem literária. No caso, a reportagem com o ministro do Ambiente (TVI, 30.05), pode ser lida como uma avalanche de figuras de retórica: uma alegoria (personificação da relação governo-TVI e governo-imprensa), uma sinédoque de menor alcance (a parte representa o todo), uma metáfora (por comparação, concretiza a relação da política com a televisão) e uma metonímia (ministro e repórter simbolizam governo e TVI). O episódio veio incrustar-se na tempestade político-mediática desencadeada pelas primeiras emissões do Bar da TV na SIC. O Bar da TV pretendia ser uma novela da vida real, mas, afinal de contas, foi a própria SIC que se apropriou dessa função. A televisão tem destas coisas. Durante uma semana, não se falou do Bar, falou-se da SIC e dos dramas edibertianos e ainda das suas consequências regulatórias e alta-autoritárias. O governo, a braços com a crise económica, a crise política, a crise de vontade, a crise dos casos suspeitos, a crise dos relatórios internacionais, o governo (uf!) transformou o episódio da SIC em diversão momentânea. Por uma vez, a crise não era sua, era da SIC. A TVI começou por tratar do assunto com olímpico desprezo. O caso não fôra provocado por ela. Não participou nos debates organizados para o efeito na SIC e na RTP1 e a resposta editorial de José Eduardo Moniz apontava o dedo à própria SIC e ao governo - ligando questões de programação a questões políticas. Dois dias depois, o Presidente da TVI, Paes do Amaral, revelava o lado empresarial da questão: o governo, através da PT/TV Cabo, estaria a favorecer a SIC na atribuição de canais; e a TVI punha como condição para um debate sobre auto-regulação a mudança de política da empresa de telecomunicações controlada pelo governo - questões de programação dependentes de questões empresariais. Para Paes do Amaral e Moniz, o governo está feito com a SIC. O que se vira no debate organizado para o programa de Maria Elisa mostrava de facto alguma aproximação, em parte simulada pela própria ausência de Pais do Amaral. Estava lá o ministro da tutela, Oliveira Martins, e o Presidente da SIC, Pinto Balsemão. O ministro olhou ameaçadoramente para o Presidente da RTP, João Carlos Silva, quando este lançou uma diatribe mais forte contra a SIC que levou Balsemão a ameaçar deixar o debate. Esse olhar simbolizava a necessidade da boa relação do governo com a SIC. Na relação de forças do audiovisual, a SIC é neste momento um aliado do governo por extensão da ampla gama de negócios com a PT e a TV Cabo: um dia depois da acusação de Pais do Amaral, a SIC anunciava a criação com a TV Cabo Portugal de dois novos canais e de uma "joint venture" para a TV interactiva. A macieza política dos noticiários e a transformação do estúdio da SIC Notícias na cadeira do poder, o que há pouco tempo poria a RTP debaixo de fogo, não podem deixar de relacionar-se com a estratégia empresarial da SIC. O mundo e a vida estão cheios de coincidências, mas o tempo ensina-nos a não sermos assim tão ingénuos. Por seu lado, o governo tratou o caso Bar da TV acautelando o relacionamento com a SIC. A carta de Oliveira Martins e Arons de Carvalho desencadeada pelo caso edibertiano era muito mais branda do que o vocabulário usado depois por Arons sobre a informação da TVI ("um nojo"). Balsemão deseja o mesmo apaziguamento: compreendeu que o Bar da TV punha em perigo a credibilidade da SIC e a sua relação privilegiada com a PT comandada pelo governo. A presença de Balsemão nos debates quase simultâneos de Margarida Marante e Maria Elisa indicava que ele reassumia o controle da situação e recolocava-a a nível empresarial. A sua presença tinha esse significado simbólico. Estes episódios revelam como o agenciamento das empresas de TV, privadas ou públicas, tem implicações fortes e directas na orientação dos seus conteúdos. A ligação da SIC à PT implicou cedências importantes da sua linha editorial e de tempo de antena ao governo. Os noticiários da SIC e da SIC Notícias estão actualmente favoráveis ao governo como nunca no passado. E a TVI, que não tem beneficiado empresarialmente do governo e da sua PT nos últimos tempos, optou por uma linha editorial que é manifestamente de pressão e de oposição que deixa o governo à beira de um ataque de nervos, como o ministro Sócrates nos mostrou. Gostaríamos todos de acreditar que não há relação entre as linhas editoriais e práticas jornalísticas e as movimentações empresariais, políticas e governamentais. Mas a televisão tem destas coisas. Entretanto, o posfácio desta tempestade foi a recusa de Miguel Lobo Antunes para dirigir a RTP. Eu achava estranho que ele aceitasse. Ao fim de poucos meses seria engolido pelo sistema. Mostrou ser um homem de bom senso e bom gosto. O serviço público de TV, já o propus há dois anos, deveria ser refundado num novo conceito e numa nova empresa, estrutura ligeira que encomendasse fora todos os seus programas. Tenho a certeza de que Lobo Antunes aceitaria dirigir essa nova estrutura e faria um bom trabalho. Assim é impossível. A RTP anda há mais de um ano à procura de um nome credível para director-geral. Não é normal que uma empresa viva assim, mas a televisão tem destas coisas.