Eduardo Cintra Torres

Estado de Sítio


Com a justificação de traições, denúncias, diz-que-diz, espiões, regulamentos, desencontros, audiências ou outra coisa qualquer - o facto é que alguma coisa tinha de acontecer em torno do Bar da TV (SIC, diariamente). Emídio Rangel, excelente na qualidade de líder carismático, arrancou palmas aos colaboradores do canal convencendo-os, como fazem sempre os líderes em perigo, que há espiões, inimigos internos, e que é preciso quebrar-lhes a espinha. Ediberto Lima, que era um excelente produtor na véspera, passou no dia seguinte a vítima da estalinização momentânea da SIC.

A razão profunda de tudo isto não está nas declarações de Rangel e de Lima aos jornalistas

É importante notar que o panorama televisivo sofreu uma alteração qualitativa com o Bar da TV. A diferença face ao outro "reality show", o Big Brother, saltou à vista. No Big Brother (TVI) a casa-estúdio, as regra, as tarefas, etc, proporcionam determinadas coisas que a produção e o operador TVI querem que aconteçam: zangas e sexo. O jogo está organizado nesse sentido, mas não provoca directamente esses eventos. No Bar da TV, dias seguidos de acontecimentos com vários concorrentes indicaram que estamos perante uma completa mistificação, uma construção falseada à partida, uma fabricação. Em resumo: o Bar da TV era uma fraude porque não era um "reality show".

Num dia assistiu-se ao caso dos pais duma concorrente, transformado em matéria de "prime time". As "regras" do programa foram esticadas com a intromissão dos pais na "casa".

No dia seguinte, houve um falso rapto duma criança, filha doutra concorrente. O caso também deu até à meia-noite. As "regras" do programa foram violadas com a saída e regresso da concorrente à "casa".

No outro dia, a produção mete dentro da casa-estúdio o "namorado" duma concorrente, com a inevitável cena de "édredon" a que os "reality shows" já nos habituaram. As "regras" do programa voltaram a ser esticadas.

Mais um dia e um dos concorrentes simula sexo oral num vibrador (ou lá o que era) que outro concorrente colocara estrategicamente à sua frente, prolongando-se a cena com os habituais nus integrais de péssimo gosto a que os concorrentes são induzidos.

No dia seguinte, um outro concorrente revela ser homossexual.

Tanta "realidade" junta, organizadinha como no argumento duma "soap opera" barata, cheirava a esturro. Não era difícil concluir que toda aquela "realidade" estava orquestrada para avivar algum interesse no programa.

Ediberto Lima já se autodenunciara dizendo que o Bar da TV seria diferente do Big Brother porque no "reality show" da TVI não acontecia nada, enquanto no dele decerto aconteceriam coisas. Prometeu e cumpriu. Invocou depois escrúpulos retroactivos, o que só mostra a sua total e fria falta de escrúpulos.

A manobra é uma grande estupidez. Resulta um dia ou dois, não resulta sempre. A audiência percebe perfeitamente que ali há gato. Que se está a falsificar. Que se está a tentar fazer só ficção onde deveria haver um naco de realidade, do mundo exterior. A SIC (não foi só Ediberto Lima, claro) preferiu a invenção despudorada, julgando que a audiência é estúpida. Bastava olhar para o Bar da TV para sentir que a ficção pesava mais na balança que a "realidade" dos concorrentes, quase todos eles muito desligados da sua vivência habitual e mantidos em permanente representação.

Sinistra, a manobra resultou afinal contra o próprio programa e contra a SIC, ao contrário do que disse Emídio Rangel ("Os cães ladram e a caravana passa"). Pela razão profunda que mencionei: com o Bar da TV não se ultrapassaram apenas os limites da decência moral, ultrapassaram-se também os limites éticos e profissionais de quem faz televisão.

A passagem dessa fronteira profissional e ética marcou qualitativamente este episódio, mais do que a fronteira da moralidade.

Provavelmente, uma parte importante dos amplos protestos contra o programa teve origem neste facto e não na moralidade, apesar de os próprios espectadores ofendidos não o consciencializarem. De facto, o Bar da TV não foi muito além do que já se fez em "questões de moral" noutros programas portugueses da SIC ou da TVI, incluindo o Big Brother. A diferença está em que aqui tudo foi espampanantemente provocado para que fosse assim, embora se chamasse ao programa "concurso" e "reality show".

Chegou-se a este ponto por não haver (auto)regulação. Os dois operadores privados entraram em roda livre e o nosso fraco Governo nada faz, com medo da TV (não está o Governo nas cadeiras da SIC Notícias? Não está o Governo sempre a bater à porta de todos os operadores de TV? Não precisa o primeiro-ministro da TV para encenar o beijo ou os seus melindres de cada vez que alguém, cá dentro ou lá fora, critica o estado da nação?). O episódio negro do Bar da TV acabou por obrigar a SIC a fazer auto-regulação sozinha, o que é, afinal, mais uma derrota.

Com o agudizar da concorrência entre os canais comerciais, que faz a RTP? Toda a gente clama que "é a hora" de o "serviço público" mostrar a diferença; com a RTP isso tornou-se muito difícil, impossível até. O dinossauro não reage. Demora um ano para arranjar um director-geral. A administração lança projectos desarticulados. A direcção da RTP1 é inexistente. A RTP2 transformou-se num fluxo quase ininterrupto de "talk-shows" inteligentes, alguns com concepção antiquada. O desânimo na empresa é total. A comissão de trabalhadores dedica-se agora a escrever comunicados literários devastadores para o sistema que ela própria alimenta há dezenas de anos.

Conseguir uma TV não comercial eficaz e independente passaria por uma revolução completa que a RTP não é capaz de fazer e que faz o Governo tremer só de pensar nela. Com os privados em guerra sem convenções de Genebra, com a RTP sem capacidade de reagir, com um Governo e um Parlamento que preferem aparecer no ecrã a resolver problemas por trás do ecrã, com uma Alta Autoridade que acorda tarde demais, resta apenas a vontade, eventual, de a própria sociedade protestar contra o estado do nosso sítio, fora das suas próprias estruturas anquilosadas, partidárias ou outras. Nisso, ao menos, seríamos um país moderno.