Colecção Privada
O quadro da semana - “A Tentação de Santo António”


Esta obra “mística e religiosa” de Salvador Dalí é a escolha de Madalena Lacerda Reis, responsável pela Colecção de Arte do Museu do Caramulo

Salvador Dalí foi um dos ícones da arte do século XX. Madalena Lacerda Reis, responsável pela Colecção de Arte do Museu do Caramulo (que tem um Dalí no seu acervo), afirma-o categoricamente. Mas o fascínio pela obra deste pintor espanhol, nascido em Figueras em 1904, vem sobretudo da sua obra “inesgotável em que o sentido provocador nunca se desvaneceu”, diz.

Em 1928, Dalí aderiu ao movimento surrealista, fundado por André Breton. Mais tarde foi acusado de actos contra-revolucionários e expulso: “A sua obra destacou-se deste movimento e os seus interesses tomaram um carácter místico e religioso mais acentuado, de que ‘A Tentação de Santo António' é exemplo.”

Este quadro, que Madalena Lacerda Reis escolheu para quadro da semana na Colecção Privada, recorre a um tema cristão e “sintetiza um momento grande da obra de Dalí em que, mais uma vez, o sonho e a vida real se confundem”. Por quê? “Dalí valoriza a tradição e o binómio céu/terra, que surgem ligados pelas patas e pernas dos animais, que se esticam como raízes de uma árvore que procura crescer”, explica.

Mas o que mais impressiona a responsável pela Colecção de Arte do Museu do Caramulo é o testemunho do próprio Dalí, quando afirma que o céu, “esse outro céu que ocupa mais que a parte superior de uma tela, não está em mais lado nenhum senão, diz Dalí, ‘exactamente no centro do peito do homem que tem fé'”. “Embora ele depois afirme não saber se é, ou não, um homem de fé, a profundidade destas palavras não pode deixar de nos comover.”

O estudo e a representação do corpo estão muito presentes em toda a obra do génio espanhol, nomeadamente em trabalhos em que Gala, a mulher, foi representada. A religião e o corpo unem-se, assim, “numa explosão de formas, numa ocupação irreal do espaço e numa alegoria onde o corpo nu e o obelisco classicizante têm uma carga de sensualidade que lhe é tão característica”.

Dalí, explica Lacerda Reis, desenvolve mecanismos de percepção e faz uso da visão e “da possibilidade que ela nos dá de cada um poder ver no mesmo sujeito coisas diferentes”. Por isso, o pintor sugere sempre imagens que devem ser interpretadas: “Elas não são só o que nos aparece à vista, são representação de algo”, diz. O próprio Dalí explica: “Não pinto um retrato para que se pareça com o sujeito; pelo contrário, o próprio sujeito é que se vai tornando parecido com o seu retrato.”

Madalena Lacerda Reis diz que esta obra pode também ser relacionada com o quadro que está no Museu do Caramulo, “Cavaleiro romano na Ibéria”, de 1954, porque nela se encontra igualmente “o mesmo tipo de estranha suspensão temporal”. Foi o próprio Dalí que doou esse quadro ao Museu do Caramulo, a pedido do fundador, Abel de Lacerda. Nesse momento, “o pintor encontrava-se impecavelmente vestido com a farda de almirante da Marinha, mas descalço”. Este episódio, conta Madalena Lacerda Reis, “é revelador do humor que também o caracterizava”.

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