Corto Maltese eleito banda desenhada do século
Por: CARLOS PESSOA
22.07.1996

Um herói para a eternidade
Qual é a banda desenhada do século? A resposta era difícil, mas não foi preciso muito tempo para chegar a um herói consensual: por uma razão ou por outra, Corto Maltese obteve facilmente a unanimidade entre os seis membros de um júri, reunido em Paris por iniciativa do grupo francês de imprensa Comareg e do Festival de BD de Chambéry. O resultado desta votação, em que participou um jornalista do PÚBLICO, é anunciado hoje em França.

Em poucos minutos, a escolha estava feita: Giulio Cuccolini (Itália), Paul Derouet (Alemanha), Philippe Mellot, Claude Moliterni (ambos de França), Yves Schlirf (Bélgica) e o jornalista do PÚBLICO elegeram Corto Maltese, do italiano Hugo Pratt, como a banda desenhada do século. Foi uma decisão que surgiu naturalmente, pois nem sequer suscitou discussão. Todos os participantes realçaram tanto a modernidade formal e temática, como a contemporaneidade - numa palavra, perenidade - de uma criação que virou uma página na história da banda desenhada.

A decisão foi tomada no decorrer de um almoço que reuniu cinco especialistas - Schlirf não pôde estar presente, mas participou telefonicamente na votação - no Salon Goncours do célebre restaurante Drouant, em Paris, no final do passado mês de Setembro. O resultado da votação foi mantido secreto até hoje, sendo anunciado no âmbito do Festival de Chambéry (França), que decidiu colocar a 20ª edição sob o signo do centenário da BD.

Os organizadores contaram com a colaboração da rede de imprensa gratuita Bonjour, que também teve a seu cargo o processo de uma outra eleição, essa destinada a escolher a "BD do público", em que foram potencialmente envolvidos os 14 milhões de leitores dos 145 títulos daquela empresa. O resultado desta segunda votação, que designou Astérix como vencedor, decorreu até ao passado dia 3 de Outubro e será anunciado também hoje.

Consciente da tremenda dificuldade inerente à designação de uma obra ou herói que incarnassem o que de melhor a BD gerou em toda a sua história, o júri optou por fazer uma distinção inicial entre géneros para facilitar um pouco as coisas - realista e de humor. Nesta óptica, Corto Maltese impôs-se como uma escolha natural, conjugando em si os requisitos considerados indispensáveis a uma criação de características realistas: é uma obra simultaneamente popular e com muita qualidade gráfica e de conteúdo.

Em contrapartida, não houve consenso na escolha de uma série humorística. Gaston Lagaffe, de Franquin, e os Peanuts, de Schulz, recolheram as preferências (com ligeira vantagem para o primeiro), enquanto o Pato Donald (na versão de Barks) se "intrometia" neste duelo Europa-Estados Unidos. Uma segunda volta dividiu o júri ao meio, sem que qualquer das partes abdicasse da sua posição.

Face a este impasse, decidiu-se voltar à fórmula inicialmente proposta. Apesar de ser menos flexível - a escolha de duas bandas desenhadas permitia abranger os dois géneros básicos e, eventualmente, consagrar um ponto de equilíbrio entre duas "famílias" do mesmo sangue (BD norte-americana e europeia) -, a solução Corto Maltese tinha a grande vantagem de comportar um consenso absoluto. O herói de Pratt foi declarado formalmente a BD do século.

O que vale um título desta natureza? Em rigor, nada. De facto, tal escolha limita-se a expressar a opinião de seis pessoas de vários países europeus que têm em comum longos anos de trabalho em torno da banda desenhada como divulgadores, editores e críticos.

Mas é, indubitavelmente, um evento que não pode ser dissociado da aura que envolve na hora presente esta forma de expressão, sobre a qual têm incidido as luzes da ribalta de forma muito especial em 1996: este é o ano em que se comemora um centenário da BD que muitos defendem e também muitos contestam (ver texto principal).

Se, para além da saudável polémica e do choque (mesmo violento...) de opiniões que a efeméride tem suscitado, a própria banda desenhada sair mais prestigiada, nem tudo se terá perdido. E a designação de Corto Maltese como uma expressão "arquetípica" do que deveria ser uma arte inevitavelmente imperfeita traduz, no limite, essa aspiração à imortalidade que qualquer obra de arte genuína traz dentro de si. Ou será que um herói de histórias aos quadradinhos não pode esperar ser lido, com o mesmo prazer que sentimos hoje, por um leitor do ano 4996?...