Quem poderia dizer que em "O Último Voo", uma emotiva homenagem ao escritor e aviador Saint-Éxupery desaparecido há meio século algures no Mediterrâneo, os sinos já tinham começado a dobrar por Hugo Pratt? E, contudo, foi preciso passar pela surpresa e estupefacção de saber, no Verão passado, que o criador de Corto Maltese tinha partido, para nos darmos conta de que aquela obra era, em todos os sentidos, o seu testamento filosófico. Ou, pelo menos, um ajuste de contas final do autor consigo mesmo, a sua vida terrena e aquilo que, muito possivelmente, ele já sabia que estava a chegar.
A banda desenhada de Pratt (edição portuguesa da Meribérica-Liber) recusa liminarmente a evocação biográfica ou a mera composição de um retrato. Através da recriação imaginária do último voo, o autor justapõe habilmente fragmentos da vida de Saint-Exupéry, graças aos quais o leitor se dá facilmente conta da diversidade e riqueza de situações vividas pelo viajante ao longo da sua vida: o Pequeno Príncipe e a combatente republicana espanhola Consuelo, o seu amigo Mermoz - desaparecido em 1936 no decorrer de um voo - e as reportagens da Guerra Civil, as viagens à Terra do Fogo e a Nova Iorque e a tantas outras paragens, a sedução dos desertos, o Extremo Oriente e o seu esforço pessoal de guerra são alguns momentos breves de uma evocação poética e sensível do caminho do escritor.
Filme de uma vida, "O Último Vôo" olha com imensa ternura e total naturalidade o destino do personagem. Pesadelo ou sonho, eis algo sobre que Pratt não está interessado em emitir o menor juízo de valor. Talvez por isso, e paradoxalmente, esta obra surpreenda pelo vigor, força e veemência que exala. E se, bem vistas as coisas, a morte não existisse mesmo?...
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