A morte de Hugo Pratt, o criador de Corto Maltese
Por: PEDRO ROSA MENDES
22.08.1995

"Descobri o que é a morte"
O conhecido desenhador e escritor italiano Hugo Pratt, criador do personagem de banda desenhada Corto Maltese, morreu ontem com 68 anos, numa clínica próxima de Lausanne, Suiça, anunciaram os familiares do autor. Nascido em Rimini em 1927, Pratt passou a infância na Etiópia e viveu quatro anos na Argentina. Foram anos loucos, o tango, a ditadura política peronista e paixões intensas.

Viajante incansável, Hugo Pratt tinha por hábito apontar no seus cadernos de viagem, rascunhos e croquis que mais tarde aproveitava para os seus desenhos. Em 1945, Pratt publicou o seu primeiro livro de banda desenhada "L'As de Pique".

Mas foi sobretudo com o seu herói Corto Maltese, editado em 1967 na revista italiana "Sgt. Kirk" com o título "Uma Balada do Mar Salgado" (ed. Bertrand) que este talentoso autor conheceu a celebridade. Foi, aliás, a partir da década de sessenta que em Portugal se começou a conhecer as aventuras do Sargento Kirk, em publicações como o "Mundo de Aventuras" (Ver PÚBLICO de 2.8.92). Pratt que não incluiu Portugal nos percursos de Corto Maltese, disse em entrevista ao PÚBLICO, naquela data:"É um belo país que continuo a gostar muito, onde conheci mulheres formidáveis e muito belas. (...) E depois há a música da viola, o fado. Mas Portugal tornou-se um produto de 'postcard', de folclore".

Na senda de Rimbaud, Stevenson, London e outros viajantes, Pratt não é redutível à sua obra, por mais rica e significativa que ela se revele.

Hugo Pratt vivia há mais de uma dezena de anos em Grandvaux, próximo de Lausanne.

As aventuras de Corto Maltese estão praticamente todas publicadas em Português. As edições 70 iniciaram no princípio dos anos oitenta o lançamento das obras deste genial autor. Em Setembro de 1990 foi reeditado o conjunto de aventuras "Sob o Signo do Capricórnio". Livros de Pratt encontram-se, também, editados a cores, na Meribérica-Liber, nomeadamente "Os Escorpiões do Deserto".

Todas as raças, todos os credos
"Como o poeta português [Fernando Pessoa], como Calderón, a minha opinião é que a verdadeira vida é um sonho, mesmo se se pode afirmar que nasci em Itália, em Rimini, no dia 15 de Junho de 1927". A genealogia do desenhador é de uma complexidade estonteante (traçada por Dominique Petitfaux nas obras citadas).

Recuando nos séculos, mistura-se no sangue paterno de Pratt a tradição de britânicos anglo-normandos fugidos para França, as ligações à maçonaria e os laços com os judeus de Veneza. Na linha materna, encontramos joalheiros de Toledo fugidos à Inquisição, turcos artesãos do vidro e um cozinheiro de navio que produz um poeta dialectal fundador do fascismo veneziano.

O desenhador parece que sorveu e capitalizou ao limite este passado familiar, que foi essencial para a sua formação intelectual, já que Pratt foi habituado desde pequeno a crescer num meio onde se misturavam as raças, os credos e as culturas. A sua biografia não desmerecerá da sua estirpe.

Pratt vive a juventude na Etiópia, com o pai (que acaba por morrer aí, prisioneiro dos franceses, em 1942, já depois de a guerra o ter separado da mulher e do jovem Hugo; o desenhador apenas descobriria a sua campa em 1968). De regresso a Itália, Hugo Pratt frequenta uma academia militar em Ombria, em 1943, até ao seu encerramento depois da assinatura do armistício. No ano seguinte, é preso pelas SS em Veneza e ingressa, forçado, na polícia marítima, de onde consegue evadir-se, para ingressar no VIII Exército como intérprete às ordens de um coronel belgo-russo.

Em Abril de 1945, Hugo Pratt entra em Veneza disfarçado de escocês, numa viatura blindada canadiana. Desempenha várias funções, desde distribuidor de senhas de gasolina a organizador de espectáculos para os soldados. No fim da Guerra, deixa o exército e emprega-se como intérprete no porto de Veneza.

O tango argentino
É depois destes anos atribulados, em fins de 1945, que começa a sua carreira de desenhador. Em torno de Mario Faustinelli, funda o "Grupo de Veneza", que inclui nomes que alcançariam a fama: uns, na banda desenhada, como Dino Battaglia; outros no cinema, como o cineasta Damiano Damiani, ou na literatura, como Alberto Ongaro. O grupo era fortemente influenciado pelos "comics" americanos.

Vem depois o período Argentino de Pratt, de 1949 a 1962 (com um ano, 59-60, em Londres), iniciado pela mão do editor Cesare Civita. Em Buenos Aires, Pratt leva uma vida boémia, trabalha em sucessivas editoras, viaja diversas vezes na Patagónia.

Hugo Pratt desenha nesses anos milhares de pranchas e o seu traço começa a afirmar-se, espécie de síntese entre a linha clara de Hergè (que ele ignorava ao tempo) e o mestre Milton Califf (que ele sempre admirou como "grande escritor e grande desenhador").

Também neste período, a vida afectiva de Pratt vai-se fazendo digna do seu herói ainda por nascer. É obrigatório recordar três mulheres: Gucky Wogerer, de origem jugoslava, com quem se casa em 1953; Gisela Dester, de origem alemã, assistente a partir de 1955; Anne Frognier, de origem belga, com quem se casa no México pouco antes de regressar à Europa (masque conhecera ainda era ela uma criança).

Os anos difíceis na Argentina, sobretudo a crise do papel, levam Pratt a regressar a Itália. Tem então cinco anos de trabalho (que ele não despreza mas que são, em termos simples, um parêntesis na sua carreira) de ilustração de textos infantis alheios. Passa, entretanto, largas temporadas na América do Sul (no Brasil vive sobretudo com famílias negras da Bahia; passa vinte dias com os índios Xavantes da Amazónia, aventura de que lhe ficará um filho).

O primeiro número da revista "Sgt. Kirk" aparece em Julho de 1967 com "Uma Balada do Mar Salgado". Um dos personagens chamava-se Corto Maltese... A revista, apesar da sua qualidade, fecha em 1969. No fim deste ano, Pratt está desempregado. Mas a sua carreira está para mudar, porque a direcção do hebdomadário infantil francês "Pif" resolve avançar com a série Corto Maltese, a partir de 1971.

Nos anos seguintes, Corto ascendeu com segurança ao olimpo restrito do imaginário literário. Ou terá sido Pratt a erguer-se? "Há autores que se tornaram um mito. Pelo que escreveram mas também, em certa medida, independentemente do que escreveram. Às vezes a sua obra torna-se numa explicação para a sua própria vida; pelo menos para aqueles que a elegem como objecto de culto", diz Umberto Eco no prefácio a "Saint-Exupéry...".

O herói Corto ultrapassa a milésima prancha em 1987. E o ano de 1990, em França e nos EUA - com exposições, edições, estudos, convites e projecção mediática - marca a consagração internacional de Pratt e a rendição total a este desenhador da cultura "oficial". Um processo que ratifica o autor italiano como um dos obreiros do reconhecimento alargado da banda desenhada como uma arte maior.

Morto Hugo, viva Corto, sempre: "Não sei bem o que acontece àqueles que não conhecem a lenda. Pressentem um perfume de lenda", constata Umberto Eco. "E se a conhecem? São reconquistados". No fim de "Saint-Exupéry...", a fala escondida de Pratt soa agora estranha: "- Eu gosto dos cemitérios... Os seus ciprestes, aquela doce quietude, o odor agradável do tomilho, os lagartos no muro circundante debaixo do sol de Verão... - Tu falas da morte... - E então?!? Eu descobri o que é a morte..."