A morte inexistente
Por: CARLOS PESSOA
02.05.1995

Meio século após o desaparecimento, algures no Mediterrâneo, de Saint-Exupéry, Hugo Pratt escreve e desenha uma emotiva homenagem ao aviador e escritor francês. "Le Dernier Vol" (Éditions Casterman) é uma daquelas histórias que não deixam indiferente quem a lê. É também a oportunidade para reencontrar um criador de eleição num dos seus melhores voos dos últimos anos.

"- Saint-Ex, não caminhes em direcção às recordações... É como se visitasses um cemitério.

- Oh!... Eu gosto dos cemitérios... Os seus ciprestes, aquela doce quietude, o odor agradável do tomilho, os lagartos no muro circundante debaixo do sol de Verão...

- Tu falas da morte...

- E então?!? Eu descobri o que é a morte...

- ... A morte é..." Sem mais palavras, fica a imagem de um avião que continua a deslocar-se rumo ao infinito, num céu azul desbotado com algumas nuvens. E, por fim, apenas mar e céu e nuvens.

O que a belíssima última prancha de "Saint-Exupéry, le Dernier Vol" (Éditions Casterman) parece querer dizer é que a morte, afinal, é aquilo que não existe: uma mera convenção para estabelecer a diferença entre um antes e um depois, ou, se se quiser, para balizar o momento final de um percurso que tem, na outra extremidade, o nascimento.

É assim que termina a história com a qual o autor se associou à celebração do 50º aniversário da morte do aviador e escritor francês, falecido no dia 31 de Julho de 1944 sobre o Mediterrâneo.

São 11h54 desse 31 de Julho, uma segunda-feira, quando a história começa, para se prolongar ao longo de 60 páginas e dez minutos - os últimos dez minutos de vida de Saint-Ex - que são o tempo real desta narrativa.

Em missão de guerra, o aviador sobrevoa o Mediterrâneo a bordo do seu Lightning P 38. Tem 43 anos e não sabe que está a viver os derradeiros momentos de vida. Desaparece sem deixar rastos, tudo levando a crer que o seu avião foi abatido por caças alemães ao largo da costa provençal.

A banda desenhada de Pratt recusa liminarmente a evocação biográfica ou a mera composição de um retrato. Através daquele voo imaginário, o autor justapõe habilmente fragmentos da vida de Saint-Exupéry, graças aos quais o leitor se dá facilmente conta da diversidade e riqueza de situações vividas pelo viajante ao longo da sua vida. O Pequeno Príncipe e a combatente republicana espanhola Consuelo, o seu amigo Mermoz - desaparecido em 1936 no decorrer de um voo - e as reportagens da Guerra Civil de Espanha, as suas viagens à Terra do Fogo e a Nova Iorque e a tantas outras paragens, a sedução que os desertos exercem sobre ele, o Extremo Oriente e o seu esforço pessoal de guerra são alguns momentos breves de uma evocação poética e sensível do caminho do escritor.

Filme de uma vida, "Le Dernier Vol" olha com imensa ternura e total naturalidade o destino do personagem. Pesadelo ou sonho, eis algo sobre que Hugo Pratt não está interessado em emitir o menor juízo de valor. Talvez por isso, e paradoxalmente, esta obra surpreende pelo vigor, força e veemência - características que estavam ausentes nas suas últimas criações. Estaremos perante o segundo nascimento de um grande criador contemporâneo de histórias aos quadradinhos?