Nos mares do sul
Por: CARLOS PESSOA
13.03.1995

"O que me fascina [na obra de Hugo Pratt] é ser um verdadeiro romance em imagens e, portanto, todo o trabalho que ele faz com o desenho. Pegue-se, por exemplo, na 'Fábula de Veneza': pois bem, é uma Veneza inteiramente revisitada, à imagem da de Thomas Mann ou de Visconti. Eis o que é, para mim, a banda desenhada."

A leitura destas declarações do escritor italiano Antonio Tabucchi à revista francesa de banda desenhada "À Suivre", na sua edição de Janeiro passado, ajuda a compreender um pouco melhor a razão da presença de uma curta novela sua, "Il Mistero dell'Annuncio Cifrato", no livro "Hugo Pratt - Avevo Un Appuntamento", editado em Novembro do ano passado pelas Edizioni Socrates (Roma, Itália). Nesta história, o criador e a sua criatura - o desenhador e argumentista Hugo Pratt e o seu herói Corto Maltese - encontram-se, por um dia de Inverno, no restaurante João dos Frangos, em Cascais, no âmbito de um obscuro caso de espionagem que os leva a Lisboa, com passagem, entre outros locais, por S. Vicente de Fora, Bairro Alto, Castelo de S. Jorge e, evidentemente, o rio Tejo.

Mas se esta é uma pura ficção com que o escritor homenageia o seu herói de BD-fetiche, o mesmo não se pode dizer dos restantes materiais deste magnífico livro que propõe, uma vez mais, um novo percurso através da obra e da vida do famoso autor italiano de histórias aos quadradinhos.

De Pratt tem-se a sensação paradoxal de que tudo já foi dito mas que, no entanto, ainda falta dizer o essencial. Daí este eterno recomeço a partir da obra e da vida - os respectivos contornos há muito que se diluíram no tempo e no espaço - do mais famoso e, porventura, fascinante criador europeu de bandas desenhadas.

O Pacífico é o espaço de deambulação fixado neste livro. No ano de 1992, Pratt vagabundeia pelo maior oceano do planeta - para a pequena história, assinale-se que, escassos dias depois de ele ter regressado à Europa, o jornalista do PÚBLICO entrevistou-o, na sua casa dos arredores de Lausana (Suíça), na evocação dos 25 anos de Corto Maltese - e é dessa viagem que, no essencial, esta obra se ocupa.

São propostos cinco roteiros muito pessoais (Rapa Nui, Rarotonga, Pago Pago, Apia e Nova Irlanda) e três retratos (Aggie Grey, R. L. Stevenson e Bully Hayes) -, introduzidos por curtos textos do autor. Mas o que realmente atrai na obra são as belíssimas aguarelas inspiradas no seu périplo, a par de outras mais antigas, e de materiais iconográficos alusivos aos locais visitados.

E, como se tudo isto não fosse já motivo mais do que suficiente para justificar a leitura, o livro inclui uma "leitura" fotográfica de Pratt na sua vivenda suíça- "Hugo Pratt in controluce" - por Armin Linke. A encerrar, Dominique Petitfaux estabelece uma bibliografia do autor, que inclui referências a incursões de Pratt por outros domínios (cinema, televisão e rádio). Ao todo, são quatrocentas páginas que valem plenamente o que custam.