História do sul
Por: CARLOS PESSOA
15.02.1995

A leitura do mais recente romance de Hugo Pratt e Milo Manara vem confirmar até que ponto é injusta a imagem deste último apenas como um autor erótico. "El Gaucho" é a saga inacabada de um velho branco com alma de índio, na Argentina do século passado.

O ano de 1987 assinala o momento em que o italiano Hugo Pratt surge como argumentista do também italiano Milo Manara: “Um Verão Indio” (edição portuguesa da Meribérica-Liber) é o resultado imediato dessa colaboração, através da qual o desenhador procura de algum modo contrabalançar a reputação de autor erótico, cimentada por várias obras nesse registo surgidas a partir de 1983.

“El Gaucho”, lançado pelas Editions Casterman no mês passado, depois de divulgado na revista italiana “Il Griffo” (1991) e em França na revista mensal “(À Suivre)”, constitui uma nova experiência de colaboração entre os dois autores. Desta vez, o talento de ambos é investido no desenvolvimento de um episódio pouco conhecido da história da Argentina, país onde Pratt viveu alguns dos mais importantes anos da sua vida. Tendo como pano de fundo o braço de ferro entre ingleses e espanhóis pelo domínio do rio da Prata, no começo do século passado, os autores dão a conhecer o destino atribulado de Tom Browne, um jovem tambor do exército britânico, e a vida trágica de Molly Malone, uma jovem irlandesa fogosa e temperamental embarcada para distrair os oficiais invasores.

“El Gaucho” é uma profunda e impressionante viagem ao fundo do passado e da memória. Velho de muitos anos, Tom é surpreendido na companhia de índios, cuja existência partilha, por uma patrulha de “cristãos”. E tem uma história para contar, entre as muitas que poderia narrar se o tempo fosse suficiente — a de Molly Malone, cujo fim trágico o antigo tambor foi incapaz de impedir.

O que mais sobressai nesta banda desenhada — que desvenda de forma particularmente aberta e lúcida os jogos de interesses e cobiças que movem os velhos e novos colonizadores do continente — é a incrível “mineralização” do protagonista: ao inelutável declínio físico de Tom corresponde uma visão do passado pontuada pela memória da jovem prostituta cujo enforcamento não conseguiu evitar. E essa presença é tão tutelar que não deixa espaço para mais nada. Quando o auditor da história pergunta o que aconteceu depois da morte de Molly, a resposta é surpreendente: “...Depois?... Já não me lembro muito bem... Fiquei velho!”.

Parcialmente divulgado em Portugal, Milo Manara é um desenhador e argumentista com uma carreira considerável, onde pontuam as suas narrativas eróticas que, de algum modo, constituem a referência básica identificadora da sua obra. “Convertido” à banda desenhada em 1967, data em que abandona uma carreira de escultor que dava os primeiros passos, evolui rapidamente para um estilo gráfico pessoal e liberto das influências originárias de Moebius. Manara, recorde-se, teve uma exposição patente na recente edição do salão Internacional de BD de Angoulême (França), no âmbito da homenagem à BD italiana.