Corto Maltese nunca esteve em Portugal, mas o mesmo não se pode dizer de Hugo Pratt, que visitou várias vezes Lisboa e outros locais do país. Em 1992, por ocasião do 25º aniversário do seu personagem, evocou para o PÚBLICO as suas reminiscências dessas incursões "Quando passei pela primeira vez por Lisboa, a caminho da Argentina, foi nos anos 50. Cheguei de barco, como era normal viajar naquele tempo. Uma cunhada minha, argentina, que tinha adquirido a nacionalidade portuguesa por ter casado com um português, vivia em Lisboa e tinha dois filhos. Era o tempo de Salazar, evidentemente. O meu cunhado disse-me para ter cuidado com o que dizia e fazia, sobretudo à noite, porque havia a polícia política. De facto, havia no ar uma sensação de opressão.
Recordo-me mesmo do perfume do azeite, com que se fritava em certas zonas da cidade e que pairava no ar. Era uma cidade de uma beleza muito particular, de que eu gostava muito. Era o tempo do fado popular, não o de Amália Rodrigues, mas de tipos novos, que queriam cantar um fado mais ritmado e mais juvenil. Eu adorava esses momentos de mudança, nos anos 50.
Lisboa era uma cidade muito bela... e muito limpa, porque os fascistas tinham o cuidado de pôr alguém a lavar as ruas às quatro ou cinco da manhã. Tal como em Córdova, no tempo de Franco. Eu acordava a meio da noite - "Mas o que é este barulho, será que está a chover?..." -, abria a janela e via uma data de gente com agulhetas, ocupada a limpar as ruas!
Logo a seguir à revolução [25 de Abril de 1974], estive na televisão, mas o que eu disse não altura não lhes agradou e convidaram-me a abandonar o país. Porquê? Oh, por uma razão muito simples. Afirmei que o que estava em curso era uma revolução militar." "Se não houver uma presença das milícias populares", acrescentei, "não há qualquer hipótese de êxito." Os militares obrigaram-me a partir imediatamente com toda a minha família.
Nessa altura Lisboa era uma cidade muito suja! Eu sei que era o tempo de todas as liberdades, mas a verdade é que se parecia mais com o metro novaiorquino. Todavia, sempre gostei de Lisboa. E quer saber porquê? Havia livrarias que me interessavam muito - e mais tarde o Centro Gulbenkian -, o ascensor em estilo "art déco" [Elevador de Santa Justa] e ao lado uma livraria de cujo nome já não me recordo [Livraria Portugal], onde passava dias e dias à procura de coisas que me interessavam.
Depois disso, de uma vez que passei férias em Portugal, fui para norte. Estive em Peniche - recordo- me de ir ao cinema que era frequentado pelos pescadores e havia raparigas que passeavam à noite com os namorados e isso era muito bom -, fui à Figueira da Foz, recordo-me de ver moinhos. E, depois, uma aldeia onde havia uma pequena capela muito bonita. Enfim, sentia-se um ambiente que era formidável, quando se descobria pela primeira vez.
Depois, tornou-se algo de muito provisório. O turismo mudou tudo. Antes, Lisboa era uma cidade cosmopolita, depois tornouse uma cidade turística. Mudou muito. É claro que, durante a guerra, Lisboa era um centro de espionagem, mas não deixava de ser cosmopolita por isso. Agora vou a certos lugares - mesmo Peniche mudou - e isso perdeu-se tudo. Esse fenómeno não aconteceu apenas em Portugal, evidentemente.
Outra coisa de que me lembro: as árvores exalavam um perfume resinoso incrível, que, passados todos estes anos, ainda conservo na memória.
É um belo país de que continuo a gostar muito, onde conheci mulheres formidáveis e muito belas. Nota-se a influência africana, de Marrocos, dos mouros... Elas são muito bonitas, muito sentimentais. E depois há a música da viola, o fado. Mas Portugal tornou-se um produto de 'postcard', de folclore. Não vejo mal nenhum nisso, porque o folclore significa tradição e esta tem a ver com a busca das origens."
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