Um herói solar pelos caminhos do mundo
Por: CARLOS PESSOA

Entre a primeira aparição no Pacífico Sul e a deambulação pelo território mítico da Atlântida dista um imenso tempo de viagem e aventura que Corto Maltese, a imortal criação do italiano Hugo Pratt, vai preencher de forma intensa

Corria o mês de Julho de 1967 quando surgiu nas bancas de Itália o primeiro número da revista "Sgt. Kirk". Além de antigas obras do desenhador italiano Hugo Pratt, criadas e publicadas nos anos 50 na Argentina - como era o caso da série "western" que dava o nome à publicação -, incluía as primeiras pranchas de uma narrativa cuja acção decorre na imensidade oceânica do Pacífico. Na quinta prancha da história, intitulada "A Balada do Mar Salgado", aparece à deriva um marinheiro de longo curso. Assinale-se o dia da ocorrência: 1 de Novembro de 1913, "tarowean", dia das surpresas, dia de Todos os Santos. Quem poderia adivinhar que este personagem secundário, chamado Corto Maltese, se iria transformar num dos mais importantes heróis de banda desenhada de todos os tempos?

Oito anos depois deste episódio, já bem enraizado no imaginário de milhões de leitores, o aventureiro é surpreendido em Itália. "Veneza seria o meu fim!", exclama o marinheiro de Malta num dos mais nostálgicos monólogos de que há memória, e depois de confessar a sua imensa paixão pela cidade italiana, muito bela e, além disso, encantada, geradora de todas as preguiças e deleites. Porque ela é também o lugar de todos os sortilégios, onde existem três sítios mágicos e secretos. Quando os venezianos, e por vezes os malteses, se cansam das autoridades, dirigem-se a estes lugares e, abrindo as portas ao fundo desses pátios, partem para sempre em direcção a países fantásticos e outras histórias.

"Fábula de Veneza", porventura a mais emblemática das aventuras do herói solar criado por Pratt, mostra de forma livre e criadora que a aventura é, antes de mais, uma atitude perante a vida e o mundo, e só depois uma deambulação aparentemente arbitrária pelos caminhos.

É verdade que Corto Maltese deixa a sua discreta mas inconfundível marca em todas as geografias conhecidas do planeta. Esteve no conflito russo-nipónico nos primeiros anos do século XX ("A Juventude de Corto Maltese"), abriu trilhos insuspeitados na floresta amazónica e foi visto na costa ocidental da América do Sul (ciclos "Sob o signo do Capricórnio" e "Sempre um pouco mais longe"). Durante a Primeira Guerra Mundial passa pela Europa e pela África Oriental (ciclos "As Célticas" e "As Etiópicas", respectivamente), enfrenta os rigores da Sibéria ("Corto Maltese na Sibéria") e procura os tesouros de Samarcanda ("A Casa Dourada de Samarcanda"). Atravessa meio mundo para procurar velhos amigos na Argentina ("Tango Argentino") depois de uma nova incursão pela cidade dos seus sonhos e mitos (a mencionada "Fábula de Veneza") e antes de mergulhar nos mistérios alquímicos ("As Helvéticas"). Termina a sua saga conhecida em demanda do mítico continente perdido da Atlântida ("Mu").

Ao longo deste extenso périplo conhece bons e maus momentos. É certo que a aparição primordial de Corto - atado de pés e mãos a uma jangada, numa representação crucificada - não é muito auspiciosa, mas isso não foi obstáculo a que viesse a impor-se mais tarde ao reconhecimento do mundo, tornandose numa das mais importantes criações da BD de todos os tempos.

Quem diz Corto diz Pratt e é difícil dizer onde acaba um e começa o outro. Aos que lhe perguntam se o personagem é ele próprio, o autor limita-se a responder que têm em comum o gosto pela aventura - "como Ulisses, é um marinheiro que vai de aventura em aventura" - e que "a sua criação foi uma intuição". Noutra ocasião declarou: "Corto não nasceu de mim. Estou certo que é um fenómeno de autocombustão. Ele vive. Aliás, nunca sei se sou eu que o sonho ou se é o inverso."

Ao seu biógrafo Dominique Petitfaux confessou: "Eu poderia também - nós poderíamos também, Corto Maltese e eu - ser o produto da imaginação fantasmática do leitor, ou então o ectoplasma de um personagem de BD... Onde está o sonho e onde está a realidade?"

Herói mediterrânico, fleumático quanto baste, é acima de tudo um observador profundamente apaixonado da condição humana em tudo o que ela tem de belo e também de horrível. Ao subverter intencionalmente os cânones da distinção convencional entre níveis e planos de existência, o criador de Corto afirma o seu direito irredutível a explorar os territórios da aventura da consciência de uma forma que é simultaneamente libertadora e desafiadora.

De Corto Maltese pode dizer-se ainda que ele não é o esquemático "herói positivo" da tradição clássica, que surge para impor olimpicamente um novo curso à acção e determinar os destinos pessoais dos que são impregnados por essa seiva redentora. É verdade que, depois dele passar, nada voltará a ser como antes, mas o que mais impressiona nas bandas desenhadas da série é o modo subtil - que não se exime a ser violento e radical quando necessário - como o herói intervém, sempre movido por uma inesgotável ânsia de justiça e humanidade. E também, o que não é de somenos importância, animado por uma incessante e nunca terminada busca da beleza, tão bem representada pelas fabulosas personagens femininas que povoam, como aconteceu na vida aventurosa do próprio Pratt, os dias e as noites de Corto Maltese.

É esta inigualável experiência que o PÚBLICO propõe aos seus leitores, ao publicar, a partir do próximo dia 20 de Setembro, uma série de 16 álbuns com as aventuras do marinheiro de Malta.