O marinheiro de Malta despede-se
de Pandora e deixa a Ilha Escondida
Por: CARLOS PESSOA

Os alemães perdem a guerra, fazendo desaparecer os precários equilíbrios entre os residentes da ilha. O Monge foge e o tenente Slütter é fuzilado.
“A Balada do Mar Salgado” chega ao fim

É um Slütter absorto que quase choca com Corto Maltese, num cenário de palmeiras e gaivotas da Ilha Escondida. O marinheiro quer saber em que pensa o oficial alemão. “Estava a pensar no passado e, assim, distraidamente, regressei à minha mocidade!... Mesmo inconscientemente, tentamos sempre reencontrá-la…” A resposta de Corto é breve e incisiva: “Deter-se assim no passado… é como guardar um cemitério.”

Diálogos como este — por vezes enigmáticos, por vezes bizarros, e noutros casos obscuros, mas em circunstância alguma irrelevantes ou supérfluos — não são ainda muito frequentes nesta primeira aventura do herói de Hugo Pratt, que agora chega ao fim com a distribuição pelo PÚBLICO, a partir de amanhã, do terceiro volume. Mas contribuem já para a afirmação de uma singularidade do personagem que, à época da sua aparição (1967), não era de todo moeda corrente na definição dos heróis de banda desenhada.


Com o passar do tempo e a vivência de mais aventuras em outraslatitudes, Corto Maltese ganha espessura e constrói-se como um herói único, cujas características o Monge já conseguira vislumbrar. Aliás, elas despertariam nele sentimentos e emoções contraditórios: primeiro, tentara matar Corto num acesso de cólera; depois, rira-se abertamente da sua ironia fina e do seu bom humor: “Ah, Corto, Corto, Corto… O que mais me agrada em ti é essa tua capacidade de nunca deixares escapar o lado divertido das coisas!”

Tão surpreendente como esse discreto — mas sempre desconcertante — culto do paradoxo por parte do marinheiro de Malta é, em todas estas situações, a revelação e afirmação, no herói, de uma sabedoria antiga que se conjuga muito bem com a sua absoluta modernidade. Pode dizer-se que nesse equilíbrio harmonioso reside um pouco do indizível sortilégio do personagem, que viria a revelar-se uma das mais brilhantes criações da BD do século XX e de todos os tempos. Mas por agora, ao terminar a leitura de “A Balada do Mar Salgado”, o que se vislumbra é que tinha acabado de “nascer” um belíssimo contador de histórias. Cada nova aventura de Corto Maltese só virá confirmar esse talento incontestável.