O herói afasta todos os que cobiçam o ouro dos czares da Rússia, mas chega de mãos vazias aos confi ns da Ásia, onde são enterrados todos os efémeros sonhos de glória
No final da saga siberiana, Corto Maltese encontra-se com Xangai-Li,
em cenário rural e primaveril, povoado por belas borboletas. São
três pranchas, alguns diálogos e uma única carícia nos cabelos da
pequena revolucionária chinesa, que concluem o segundo volume de
“Corto Maltese na Sibéria”, álbum que amanhã (15 de Novembro) será distribuído com
o PÚBLICO.
A curta sequência é um oásis de afectos e emoções — de facto, os
dois personagens “olham-se e acariciam-se com os olhos”, como dirá
mais tarde Hugo Pratt ao recordar esta cena — num mar encapelado
de violência que atravessa toda a narrativa, culminando uma das
mais encarniçadas caças ao tesouro da história da banda desenhada.
Talvez devido a esse registo dissonante, a cena impressionou muitas
leitoras, a fazer fé nas declarações do criador italiano ao seu biógrafo
Dominique Petitfaux: “Todas as mulheres adoram a sequência, com as
borboletas e os arrozais, e o marido [de Xangai-Li], que tem a delicadeza
de se afastar.”
Desde o primeiro encontro é visível uma ambivalência de sentimentos
entre os dois personagens que não cessa de ganhar forma ao longo da
aventura. Entre os documentos pessoais da revolucionária comunista
foi encontrada esta lúcida descrição do que estava em jogo: “Perguntei
muitas vezes a mim própria o que poderia Corto Maltese pensar da
nossa luta revolucionária, da nossa busca de dignidade face aos colonialistas,
aos senhores da guerra e aos grandes senhores feudais. Ele acolhia com ironia a maior parte das minhas reflexões, mas acho que
sentia ao mesmo tempo uma certa admiração pelo nosso combate. Mas
talvez os sentimentos dele em relação a mim fossem mais complexos e
nem todos dependessem de uma análise política...”
Até chegar de novo à fala com Xangai-Li nos campos de Kiangsi, Corto
terá de atravessar praticamente toda a Ásia, nos terríveis anos (1919-
1920) que se seguem à Revolução Russa de 1917. O tesouro imperial russo
que o marinheiro de Malta persegue na companhia do seu louco amigo
Rasputine é cobiçado por todos — japoneses, chineses, ocidentais, russos
brancos e russos soviéticos, sociedades secretas e senhores da guerra,
além de um barão louco, uma duquesa sublime e uma jovem chinesa. E
a todos o herói enfrenta, numa belíssima metáfora sobre o crepúsculo
de impérios representativos da “velha ordem”, que é também o tempo
de afirmação de uma nova ordem, ideologicamente sustentada, que
mobilizará milhões de pobres, oprimidos e famintos.
No permanente choque de vontades e de ambições que não parecem
atribuir o menor significado à vida humana, só um herói da envergadura
de Corto Maltese — suficientemente desprendido para não ser
arrastado pelas leis implacáveis da barbárie, absolutamente lúcido
para gerir com realismo as situações-limite que o desafiam — poderia
chegar a bom porto. Mas mesmo a ele tudo escapa, a começar pelo tesouro
perseguido. A diferença é que isso não tem a menor importância,
pois o herói é o único que detém o segredo da saída do “labirinto das
perguntas e das respostas” que Hugo Pratt sabia presidir à existência
dos homens.
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