Na frente de guerra do Somme, Corto Maltese desmascara uma
espia alemã. E assiste impávido à morte do “Barão Vermelho”
porque os heróis de carreira o deixam indiferente
“Mas por que é que as mulheres
que me interessam estão
sempre do outro lado da barricada?...”,
interroga-se Corto
Maltese no final do julgamento
que condenou à morte “Lady”
Rowena Welsh. O questionamento
ocorre em “Sonho de
Uma Manhã de Meados de Inverno”
– uma das histórias do
segundo volume de As Célticas,
que hoje é posto à venda com
o jornal PÚBLICO – e parece
sublinhar um certo fatalismo
na condição do herói criado
pelo italiano Hugo Pratt. Este último, porém, persiste sempre
em “trocar as voltas” aos estudiosos
da obra, respondendo às
questões que lhe são postas de
forma mais ou menos desconcertante,
mas invariavelmente
desdramatizada:
“Não se pode casar Corto Maltese. O meu público feminino
não quereria que Corto Maltese
tivesse uma mulher fixa. É
sobretudo por esse motivo que
ele caminha de fracasso em fracasso
[amoroso]. Mas mantém
laços com mulheres.
” As mulheres não são osúnicos interlocutores do herói
nas histórias celtas deste volume,
publicadas pela primeira
vez na revista francesa “Pif”
em Março (“Sonho de Uma
Manhã…”), Junho (“Côtes de
Nuit e Rosas da Picardia”) e
Julho (“Burlesca ou não entreZuydcoote e Bray-Dunes”) de
1972. No palco europeu da I
Guerra Mundial, Corto trabalha
para a contra-espionagem
aliada, mas apenas para
poder livrar os seus amigos
Caïn Groovesnore e Trécesson
das acusações de traição.
Semanas antes, o herói
movimenta-se na frente
do Somme e assiste à morte do “Barão Vermelho”
e ás da aviação
prussiana, Manfred von
Richthofen. A pilhagem dos restos mortais do oficial
pelos soldados, só para
terem uma recordação do
temível inimigo, inspiralhe
um duro comentário: “Os heróis de carreira
deixam-me completamente
indiferente.”
Tal como Corto, também
Pratt não manifesta a menor
simpatia pelo “culto dos heróis”.
A leitura dos clássicos
da Antiguidade na juventude
levaram-no a preferir “Heitor a
Aquiles, porque tinha o sentido
da família e não era invulnerável”,
afirmou. “Hoje a minha
concepção do herói coincide
com a que eu tenho do homem-tal-como-ele-deveria-ser: um
herói é aquele que consegue fazer
frente a uma situação difícil
conservando ao mesmo tempo
uma certa ética. Guerreiro ou
pacifista, o herói é aquele que
consegue tornar-se ou manterse
plenamente humano. O herói
é o Homem.”
Quem não reconhece essas
qualidades arquetípicas em
Corto Maltese?
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