Pedro Rosa Mendes
Corajoso, erudito e elegante
JORNALISTA E ESCRITOR

Quando penso em Corto Maltese, penso logo em “A Casa Dourada de Samarcanda”, que é, para mim, o mais belo episódio. No universo da série, é o equivalente a “Tintin no Tibete”, pois existe nele mais calor do herói do que em qualquer outra história. Foi isso que me impressionou, quando a li pela primeira vez, por volta dos 18 anos. Recordo a amizade conflituosa entre Rasputine e o herói, no limite do suportável, e também o telefonema de Corto para Estaline, que é uma sequência notável. Adoro a forma como Hugo Pratt introduz espaços e vazios no diálogo, uma brilhante maneira de interceptar a sua ficção com a história. Quando isso é bem feito, seja num romance ou numa BD, torna a leitura imprescindível. Todas as coisas que acontecem nas aventuras de Corto são verosímeis e são-no porque Pratt lia imenso, além de ser um grande viajante. Ao contrário de Salgari, que viajou muito nas bibliotecas, Pratt tinha uma sabedoria da viagem e do mundo que se reflecte nas histórias de Corto, para quem não há lugar algum em que não se sinta à vontade. O herói é, por isso, um objecto de inveja, uma espécie de arquétipo que faz confluir em si a coragem, a erudição e a elegância. Ele é muito mais do que um marinheiro — aquilo que em bom português qualificaríamos como “um senhor” — pelas relações de amizade que tece, pela forma como enfrenta aceitar e resolver os riscos, porque, em suma, está bem em todo o lado. Corto Maltese é um homem de acção, mas o que Pratt desenha a maior parte do tempo é o silêncio e o espaço interior do personagem, feito à custa de uma simplicidade de manchas de preto que contribuem para criar a intimidade do herói.