Quando penso em Corto
Maltese, penso logo em “A Casa Dourada de
Samarcanda”, que é,
para mim, o mais belo
episódio. No universo da
série, é o equivalente a “Tintin no Tibete”, pois
existe nele mais calor do
herói do que em qualquer
outra história. Foi isso
que me impressionou,
quando a li pela primeira
vez, por volta dos 18
anos. Recordo a amizade
conflituosa entre
Rasputine e o herói, no
limite do suportável, e
também o telefonema
de Corto para Estaline,
que é uma sequência
notável. Adoro a forma
como Hugo Pratt introduz
espaços e vazios no
diálogo, uma brilhante
maneira de interceptar a
sua ficção com a história.
Quando isso é bem feito,
seja num romance ou
numa BD, torna a leitura
imprescindível.
Todas as coisas que
acontecem nas aventuras
de Corto são verosímeis
e são-no porque Pratt
lia imenso, além de ser
um grande viajante. Ao
contrário de Salgari,
que viajou muito nas
bibliotecas, Pratt tinha
uma sabedoria da viagem
e do mundo que se
reflecte nas histórias de
Corto, para quem não há
lugar algum em que não
se sinta à vontade.
O herói é, por isso, um
objecto de inveja, uma
espécie de arquétipo
que faz confluir em si
a coragem, a erudição
e a elegância. Ele é
muito mais do que um
marinheiro — aquilo
que em bom português
qualificaríamos como “um senhor” — pelas
relações de amizade
que tece, pela forma
como enfrenta aceitar
e resolver os riscos,
porque, em suma, está
bem em todo o lado. Corto
Maltese é um homem de
acção, mas o que Pratt
desenha a maior parte
do tempo é o silêncio
e o espaço interior do
personagem, feito à custa
de uma simplicidade de
manchas de preto que
contribuem para criar a
intimidade do herói.
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