“O nosso mundo não morrerá enquanto houver na Bretanha alguém
capaz de sonhar”, diz Morgana, deusa das águas na tradição
celta e meia-irmã do rei Artur, a quem um dia roubou a espada
Excalibur. A réplica de Oberon, rei dos elfos que soube mobilizar o
seu pequeno povo contra os saxões que ameaçavam a Bre- tanha, é
magnífica: “Ah, fada Morgana, o que disseste é a coisa
mais bela que já ouvi…”
Logo de seguida, Merlin cortará cerce este diálogo,
porque depois da vitória total, ao lado de Corto
Maltese, contra os alemães que se preparavam
para invadir a Inglaterra, chegou o tempo de voltar
para Brocelândia e para a doçura dos seus sonhos,
povoados pelo sortilégio da fada Viviana.
O tremendo combate entre os exércitos luminosos
e sombrios do concerto das divindades faz-se, na
belíssima aventura que é “Sonho de uma Noite de
Meados de Inverno” (ciclo As Célticas), por mediação
dos humanos, colocando frente a frente
o marinheiro de Malta e Rowena Welsh. Corto Maltese dorme no recinto de Stonehenge e aceita entregar-se à
concretização de um desígnio mais vasto. Mas o abalroamento do
submarino alemão que salvou o estado-maior britânico, reunido
no Castelo de Tintagel, foi mesmo acção sua ou não terá passado
de mais uma fantasmagoria onírica? A dúvida persiste e no final
o que há é um corvo que crocita incongruências, enquanto o herói
se afasta das ruínas, após ter defendido “a nossa terra céltica
encantada”.
Quanto a Morgana, terá de continuar a lidar com
reis imbecis e rainhas ciumentas, bobos cínicos e
cavaleiros ridículos: “Tudo se complica quandoé preciso assumir um papel nas contendas dos
humanos, que desconhecem todas as regras
que regem o mundo. Há milénios que eles me
cansam com os seus clamores e sobressaltos. E
ainda que por vezes assuma os traços de um
marinheiro de Malta, a mecânica humana é
decididamente demasiado simplista para a
minha vida de eternidade.”
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