Corto Maltese sonha em Stonehenge e liberta a Inglaterra da ameaça germânica
Por: CARLOS PESSOA

Os mitos celtas e germânicos são actualizados em aventuras que põem frente a frente dois mundos antagónicos. O herói está no meio e toma partido

“Dormir no interior do círculo desenhado pelas pedras megalíticas de Stonehenge é uma prerrogativa dos heróis, dos que não têm onde reclinar a cabeça nas suas eternas andanças pelos caminhos do mundo. Corto Maltese é um desses seres, por quem a aventura chega até nós, rodeada do mistério e do encanto que só os criadores de eleição transportam dentro de si.

Em "Sonho de uma Manhã de Meados de Inverno", onde ocorre a situação descrita (primeira publicação na revista francesa "Pif", em Março de 1972), Corto Maltese adormece e ao sonhar é convocado pelas divindades da tradição celta, mobilizadas pelas ameaças que pairam sobre a Inglaterra. Aceita sem hesitações ser o agente da intervenção divina nas coisas da Terra, talvez porque, mais do que sonhar, ele seja sonhado por outros, os que regem os destinos da vida e da morte.

Os referenciais eternos da mitologia e dacultura celtas atravessam todas as aventuras do segundo volume de As Célticas, que amanhã será distribuído com o PÚBLICO. Num caso de forma mais evidente, como na história já mencionada, noutro mais discretamente,
como em “Burlesca ou não entre Zuydecoote e Bray-Dunes” (revista “Pif”, Julho de 1972), onde o teatro de sombras inicial se assume como uma fabulosa metáfora sobre a imemorial luta entre o bem e o mal, a luz e a sombra, o céu e a terra. Em qualquer dos casos, o que está presente é o eco que tais manifestações — celtas ou germânicas — produziram no criador de Corto Maltese. “Acho fabulosos esses mundos povoados por cavaleiros, fadas, feiticeiros e divindades em guerra. Gosto de me encontrar com Merlin, Morgana, Oberon, os Nibelungos ou as Valquírias. Se a mitologia celta me toca tanto é, sem dúvida, porque me parece misteriosa. Um herói irlandês mítico, Cuchulainn, que [o poeta] Yeats cantou, faz-me sonhar”, afirmou um dia Hugo Pratt.

Em pano de fundo, como se se tratasse deum cenário de grandes dimensões e efeitos espectaculares, está a I Grande Guerra Mundial, que é o espaço de movimentação dos personagens em “Côtes de Nuit e Rosas da Picardia” (revista “Pif”, Junho de 1972). As opiniões do desenhador sobre a guerra são límpidas: “É claro que a guerra é uma idiotice, mas o problema é que por vezes é necessário fazê-la, somos obrigados a travála. É sempre uma desgraça e uma má solução. Toda a minha experiência da guerra leva-me a dizer que é detestável. E a ideia de que para ser homem é necessário ter feito a guerra é absurda. É tipicamente uma ideia dos que não sabem nada acerca da guerra.”não sabem nada acerca da guerra.”

Porquê, então, transformá-la em tema de uma história aos quadradinhos? Responde de novo Pratt: “Faço bandas desenhadas e a guerra é um ponto de partida cómodo. Nas minhas histórias coloco o que conheço bem: as viagens, as mulheres e a guerra. De um ponto de vista gráfico, os soldados têm o seu interesse: antes da Segunda Guerra Mundial os uniformes eram belos e originais.”