As vidas das mulheres que se cruzam com o herói são tudo menos banais. É na Amazónia, nas Antilhas ou em Belize que os seus destinos se decidem...
“As mulheres seriam maravilhosas se pudéssemos
cair nos seus braços sem cair nas suas
mãos.” A frase é proferida por Corto Maltese
no final de “Uma Águia na Selva”, banda
desenhada inaugural do segundo volume de
Sob o Signo do Capricórnio, que será distribuído
amanhã com o PÚBLICO. Hugo Pratt,
o autor da série, é intencionalmente vago
sobre esse ponto nas entrevistas com o seu
biógrafo Dominique Petitfaux (“De l’Autre
Cotê de Corto”, Éditions Casterman, 1990): “Encontrei essa frase em algum lado ou é
mesmo minha? Já não sei.”
Sem outro enquadramento, dir-se-ia que
o herói se entrega a uma deriva misógina,
pouco abonatória para a sua imagem de herói
“positivo” e apolíneo. Mas ele tem as suas
razões, pois Boca Dourada e Morgana acabam
de matar dois coelhos com uma só cajadada:
o afundamento do cargueiro brasileiro no
canal da ilha de Marajá, na embocadura do
Amazonas, bloqueia o acesso ao mar do navio
de guerra alemão e, ao mesmo tempo, impede Corto de aceder ao ouro do galeão espanhol afundado no mesmo local…
As duas mulheres, que ocupam um lugar de
relevo na galeria de personagens femininas da
série, voltarão a encontrar-se com o herói mais
tarde. Uma e outra fazem parte integrante de
um conjunto de histórias curtas (20 pranchas)
cuja acção se passa na América Latina,
publicadas em 1970-71 na revista francesa “Pif”. Ao longo destes episódios, Pratt vai
consolidando o perfil do seu herói, dotando
simultaneamente a série de uma galeria de
personagens secundários de grande envergadura
e dimensão. Em particular, destacam-se
Ambiguïté (“… E voltaremos a Falar…”) e
Soledad Lokäarth (“Por Culpa de Uma Gaivota”).
A primeira, descendente do célebre
pirata Barracuda, incarna o princípio do Mal
e projecta uma personalidade muito vigorosa
na narrativa – “é uma personagem feminina
muito forte”, reconheceu o artista italiano. A
segunda constitui uma presença angelical
protectora e solícita, porque Pratt quis que
ela fosse “uma rapariga gentil e doce”. Entre
os dois pólos da dualidade encontra-se Corto
Maltese, observador atento e distanciado dos
dramas alheios. Ambiguïté morre nos seus
braços e ao exalar esse último sopro de vida
torna-se magicamente bela, redimida de uma
existência obscura. Soledad, pelo contrário, toma
o herói – mergulhado numa momentânea
perda de identidade pessoal – nos seus braços
protectores e salva-lhe a vida, transfigurada e
redentora a seus olhos. Por fim, há Rasputine – o “vilão total” que resgata Corto nas águas do
Pacífico em “A Balada do Mar Salgado” –, que
reaparece agora na aventura “... E Voltaremos
a Falar dos Cavaleiros da Fortuna”. Surge ao
lado de Corto em Saint Kitts (hoje S. Christopher),
nas Antilhas, antes de desaparecer de
novo, em direcção a Cuba.
Os leitores de “Pif” são confrontados com a
inequívoca singularidade destes personagens
e das suas histórias, que assinalam uma viragem
fundamental no sentido da maioridade
da BD. Mas também Pratt acaba por beneficiar
de uma preciosa visibilidade, graças às
astronómicas tiragens da revista, que no seu
apogeu registava cerca de meio milhão de
exemplares por número.
|