"Corto Maltese perde a memória por culpa de uma gaivota"
Por: CARLOS PESSOA

As vidas das mulheres que se cruzam com o herói são tudo menos banais. É na Amazónia, nas Antilhas ou em Belize que os seus destinos se decidem...

“As mulheres seriam maravilhosas se pudéssemos cair nos seus braços sem cair nas suas mãos.” A frase é proferida por Corto Maltese no final de “Uma Águia na Selva”, banda desenhada inaugural do segundo volume de Sob o Signo do Capricórnio, que será distribuído amanhã com o PÚBLICO. Hugo Pratt, o autor da série, é intencionalmente vago sobre esse ponto nas entrevistas com o seu biógrafo Dominique Petitfaux (“De l’Autre Cotê de Corto”, Éditions Casterman, 1990): “Encontrei essa frase em algum lado ou é mesmo minha? Já não sei.”

Sem outro enquadramento, dir-se-ia que o herói se entrega a uma deriva misógina, pouco abonatória para a sua imagem de herói “positivo” e apolíneo. Mas ele tem as suas razões, pois Boca Dourada e Morgana acabam de matar dois coelhos com uma só cajadada: o afundamento do cargueiro brasileiro no canal da ilha de Marajá, na embocadura do Amazonas, bloqueia o acesso ao mar do navio de guerra alemão e, ao mesmo tempo, impede Corto de aceder ao ouro do galeão espanhol afundado no mesmo local…

As duas mulheres, que ocupam um lugar de relevo na galeria de personagens femininas da série, voltarão a encontrar-se com o herói mais tarde. Uma e outra fazem parte integrante de um conjunto de histórias curtas (20 pranchas) cuja acção se passa na América Latina, publicadas em 1970-71 na revista francesa “Pif”. Ao longo destes episódios, Pratt vai consolidando o perfil do seu herói, dotando simultaneamente a série de uma galeria de personagens secundários de grande envergadura e dimensão. Em particular, destacam-se Ambiguïté (“… E voltaremos a Falar…”) e Soledad Lokäarth (“Por Culpa de Uma Gaivota”). A primeira, descendente do célebre pirata Barracuda, incarna o princípio do Mal e projecta uma personalidade muito vigorosa na narrativa – “é uma personagem feminina muito forte”, reconheceu o artista italiano. A segunda constitui uma presença angelical protectora e solícita, porque Pratt quis que ela fosse “uma rapariga gentil e doce”. Entre os dois pólos da dualidade encontra-se Corto

Maltese, observador atento e distanciado dos dramas alheios. Ambiguïté morre nos seus braços e ao exalar esse último sopro de vida torna-se magicamente bela, redimida de uma existência obscura. Soledad, pelo contrário, toma o herói – mergulhado numa momentânea perda de identidade pessoal – nos seus braços protectores e salva-lhe a vida, transfigurada e redentora a seus olhos. Por fim, há Rasputine – o “vilão total” que resgata Corto nas águas do Pacífico em “A Balada do Mar Salgado” –, que reaparece agora na aventura “... E Voltaremos a Falar dos Cavaleiros da Fortuna”. Surge ao lado de Corto em Saint Kitts (hoje S. Christopher), nas Antilhas, antes de desaparecer de novo, em direcção a Cuba.

Os leitores de “Pif” são confrontados com a inequívoca singularidade destes personagens e das suas histórias, que assinalam uma viragem fundamental no sentido da maioridade da BD. Mas também Pratt acaba por beneficiar de uma preciosa visibilidade, graças às astronómicas tiragens da revista, que no seu apogeu registava cerca de meio milhão de exemplares por número.