José Manuel Castanheira
Uma certa costela anarquista
ARQUITECTO E CENÓGRAFO

O que mais me fascina em Corto Maltese, de quem gosto muito, é a sua faceta de herói... anti-herói. Apesar da reserva com que todos os paralelismos devem ser olhados, ele é um dos ícones da nossa história, comparável a Ulisses, Che Guevara ou Salgueiro Maia — é um daqueles indivíduos que sentem ter uma missão, um papel a desempenhar na história. À boa maneira dos heróis, está sempre do lado dos “bons” e defende os valores mais nobres. Depois de interferir nas histórias, sai delas e segue para outra viagem. Por tudo isso, Corto Maltese é muito fascinante e representa algo de que estamos muito necessitados. Vale a pena referir também a dimensão romântica do herói, sempre com uma participação apaixonante nos acontecimentos. O que me entusiasma em Corto Maltese é uma certa costela anarquista “light”, pois é um personagem cioso da liberdade e de saber gozá-la, procurando para os outros o mesmo que quer para si, sem desprezo pelas coisas boas da vida, como a aventura, as mulheres ou as viagens.

Foi na revista “(À Suivre)”, no final dos anos 70 e durante toda a década seguinte, que tomei contacto com as histórias de Hugo Pratt. A banda desenhada de que mais gosto é a “Fábula de Veneza”, que foi também a primeira que li. Ficou para sempre no meu imaginário, porque é intrigante, está cheia de mistério e decorre naquele cenário fabuloso de Veneza. E depois há aquele traço expressivo, sintético e depurado, que é genial, utilizando apenas pequenos sombreamentos ou um traço mais grosso para dar mais profundidade à cena. Isso é feito de uma forma simultaneamente fantástica e abrangente.