Corto Maltese atravessa a Ásia perseguido pelo seu duplo
Por: CARLOS PESSOA

O herói percorre meia Ásia por um tesouro, mas este propósito esconde outro: salvar o seu amigo Rasputine, que é a fi gura central da história.

Tudo começa em Rodes, onde Corto Maltese aceita involuntariamente desempenhar o papel de segundo Marco Polo, trilhando rotas antigas para encontrar o fabuloso tesouro de Alexandre, “o Grande”. Não é a primeira vez que o herói parece vivamente animado por esse propósito aventureiro, à primeira vista ambicioso e cúpido, mas na prática desapaixonado e pouco veemente. Em “A Casa Dourada de Samarcanda”, a aventura do marinheiro de Malta que começou a ser publicada pela primeira vez, em simultâneo, nas revistas “(À Suivre)” (França) e “Linus” (Itália) em Agosto-Setembro de 1980 (no caso francês, ininterruptamente até Fevereiro de 1981; no caso italiano, interrompida na data anterior e só completada na revista “Corto Maltese”, entre Outubro de 1983 e Abril de 1985), o objectivo do herói de Hugo Pratt é outro – libertar o seu amigo Rasputine, encarcerado na Casa Dourada de Samarcanda, que dá o título a esta aventura. O complexo e contraditório relacionamento entre os dois personagens atinge nesta aventura um ponto culminante, quando o próprio Corto afirma, a respeito do ex-soldado russo, que “ninguém sabe destruir melhor tudo o que se arrisca a assumir uma faceta sentimental”. Hugo Pratt concorda:

“É verdade, mas é preciso que Rasputine seja mesmo assim. Há momentos em que Corto é sensibilizado por coisas de uma forma romântica, mas Rasputine chama-o à realidade. Quando ele não está lá, ponho Corto a tomar banho de imersão ou um duche!”

Como se poderá constatar já na primeira parte da aventura, que será distribuída amanhã com o PÚBLICO, toda esta vasta região que o herói se propõe atravessar, até se deter junto à fronteira entre o Afeganistão e o Império britânico das Índias, vive um período de grandes convulsões. Os conflitos envolvem tanto as nacionalidades locais – arménios, turcos, curdos – como diversas potências estrangeiras (franceses, ingleses, soviéticos) desejosas de partilhar os despojos do Império Otomano desmembrado na sequência da Primeira Guerra Mundial. Para tornar a situação ainda mais complexa, Corto descobre a sua parecença física com um tal Chevket, amigo de Enver Pacha, coincidência que tanto lhe traz apoios inesperados como o coloca na mira de inimigos inesperados. Tudo isso lhe tinha sido, de alguma forma, anunciado por Cassandra, a sua amiga grega, ao ler as borras do café: “A tua vida corre perigo… Mas é estranho… Parece que te matas, embora não se trate de um suicídio!!!” Mas, como de costume, o herói não leva muito a sério as revelações que lhe dizem respeito.

A atitude de Corto é, de certo modo, uma resposta diferida à intenção do próprio criador, que há muito tempo desejava desenvolver a ideia do herói e do seu duplo: “A sua mãe [de Corto] tinha-lhe dito – e a minha também dizia o mesmo – que é perigoso encontrar o nosso duplo, porque um deles traz desgraça ao outro. Pensei que isso era interessante… Tudo o que Cassandra lê nas borras de café acontecerá no final da história. O fim da história já está contido no princípio.”