“Fábula de Veneza”
Por: CARLOS PESSOA

Durante sete dias singulares, Corto Maltese percorre a cidade misteriosa e mágica. Como num sonho, procura a mítica esmeralda conhecida por “Clavícula de Salomão”

“Acontecem coisas inacreditáveis nesta cidade”, diz Corto Maltese, estupefacto por encontrar no seu bolso a esmeralda conhecida por “Clavícula de Salomão”. Ficção ou realidade, pouco importa, porque este é o único epílogo que poderia ter uma aventura como “Fábula de Veneza”, a banda desenhada do marinheiro de Malta que hoje é distribuída com o PÚBLICO.

Numa narrativa que se desenvolve ao longo de sete dias singulares, o italiano Hugo Pratt dá testemunho do seu “amor por Veneza”, impregnando a cidade e os seus habitantes de ocasião com uma atmosfera simultaneamente misteriosa e mágica. Sabe-se a razão sensível que trouxe Corto de novo à cidade — decifrar o enigma contido na carta que lhe foi enviada pelo Barão Corvo, dando supostamente acesso ao paradeiro da mítica pedra preciosa. As pistas semeadas no seu caminho propiciam ao herói uma deambulação só aparentemente errante por Veneza, já dominada pelos fascistas e onde os adeptos das escolas de cunho iniciático — a começar pela Maçonaria — têm cada vez maiores dificuldades em se exprimir livremente.

Com um distanciamento que se tornou a sua inconfundível imagem de marca, o marinheiro não parece levar a sério nada do que acontece, movimentando-se sempre na subtil margem que distingue o real do imaginado e a verdade da efabulação. E, contudo, é bem concreta a perseguição dos homens da “Sereníssima” e dos carabineiros, assim como a queda que coloca Corto Maltese entre a vida e a morte. É, aliás, nesse limbo que ocorre um dos mais belos registos oníricos da banda desenhada traduzidos em imagens.

Tudo o que se passa em “Fábula de Veneza”, publicada pela primeira vez entre 3 de Julho e 23 de Dezembro de 1977 na revista italiana “L’ Europeo”, não terá, afinal, passado de um sonho — não é verdade que o herói acorda de um sonho para entrar noutro e ainda outro, numa sucessão de desvendamentos que não parece terminar? Em todo o caso, é um belíssimo sonho: tem o condão de entreabrir discretamente a janela para uma outra dimensão da realidade que pode sempre ser franqueada. Basta que se queira, afirma Corto Maltese.