Nos labirintos da cidade, o herói cruza-se com maçons encapuçados e fascistas enfurecidos,
um poeta amigo de Mussolini e uma sósia de Louise Brooks. Sonho ou realidade?
Ao cair abruptamente no piso mosaico do templo, onde decorre
uma sessão da respeitável loja Hermes, a Oriente de Veneza, Corto
Maltese interrompe de forma irregular os trabalhos maçónicos. O
profano é em seguida conduzido à Sala dos Passos Perdidos, para
prosseguir no mundo profano a sua demanda da “Clavícula de Salomão”,
uma mítica esmeralda que é mais uma chave de acesso ao
conhecimento fundamental do que uma gema propriamente dita.
Esta invulgar situação, logo nas páginas iniciais de “Fábula de
Veneza”, o álbum de Corto Maltese que amanhã será distribuído
com o PÚBLICO, expõe um herói irónico, que reivindica para si a
discreta condição de marinheiro-livre quando o venerável da loja
quer saber se ele é pedreiro-livre. Numa conversa com o seu biógrafo
Dominique Petitfaux, no decorrer da qual se fica a saber que
ele próprio foi iniciado na franco-maçonaria, Hugo Pratt explica o
registo adoptado: “Ser maçon é ser triste. Esta confraria é triste,
eles ignoram a ironia.”
O universo maçónico, pelo qual o marinheiro acaba por manifestar
simpatia ao desmascarar o traidor infiltrado entre os iniciados, não
é o único referencial simbólico desta narrativa. O neoplatonismo e a
cabala contribuem igualmente para reforçar a dimensão esotérica
de Veneza (“Veneza é uma cidade esotérica”, disse Pratt), a quem
o artista rende neste álbum uma sentida homenagem. Porém, ao
aceitar o desafio do Barão Corvo, escritor britânico que morreu em Veneza em 1913, Corto Maltese dá um toque “policial” à procura da
esmeralda salomónica. É uma busca subtilmente prosaica, que o leva
a cruzar-se com o poeta Gabriele D’Annunzio, amigo de Mussolini
que não simpatiza muito com os seus seguidores da juventude fascista,
com Hipazia — a filha de Téon que acredita ser a reincarnação da
matemática e filósofa grega Hypatia — e com Louise Brookszowyc,
sósia da actriz americana Louise Brooks, entre outros personagens
não menos singulares.
No final da história, depois de ter sido confrontado com as “coisas
inacreditáveis” que acontecem na cidade, Corto conclui que o melhor
é não “tentar compreender”, pois é sempre possível descobrir que
mesmo as coisas mais reais — como a ambicionada esmeralda no
bolso das suas calças – são feitas “da mesma substância dos sonhos”.
E quando assim acontece — de facto, nunca se sabe muito bem onde
termina o reino da razão e tem início o império da fantasia —, o herói
bate discretamente a uma porta e sai da história, pedindo “para
entrar numa outra, noutro lugar”. É o culminar de uma aventura
intensa em que Hugo Pratt confessa ternamente a sua imensa paixão
pela cidade italiana de Veneza, tão bela e tão encantada que gera
todas as preguiças, deleites e sortilégios. Um deles é ela ser o lugar
onde existem três lugares mágicos e secretos. Quando os venezianos,
por vezes malteses, se cansam das autoridades, dirigem-se a estes
lugares e, abrindo as portas que existem ao fundo desses pátios,
partem para todo o sempre em direcção a países fantásticos e outras
histórias.
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