Corto Maltese procura uma esmeralda em Veneza e sai da história
Por: CARLOS PESSOA

Nos labirintos da cidade, o herói cruza-se com maçons encapuçados e fascistas enfurecidos, um poeta amigo de Mussolini e uma sósia de Louise Brooks. Sonho ou realidade?

Ao cair abruptamente no piso mosaico do templo, onde decorre uma sessão da respeitável loja Hermes, a Oriente de Veneza, Corto Maltese interrompe de forma irregular os trabalhos maçónicos. O profano é em seguida conduzido à Sala dos Passos Perdidos, para prosseguir no mundo profano a sua demanda da “Clavícula de Salomão”, uma mítica esmeralda que é mais uma chave de acesso ao conhecimento fundamental do que uma gema propriamente dita.

Esta invulgar situação, logo nas páginas iniciais de “Fábula de Veneza”, o álbum de Corto Maltese que amanhã será distribuído com o PÚBLICO, expõe um herói irónico, que reivindica para si a discreta condição de marinheiro-livre quando o venerável da loja quer saber se ele é pedreiro-livre. Numa conversa com o seu biógrafo Dominique Petitfaux, no decorrer da qual se fica a saber que ele próprio foi iniciado na franco-maçonaria, Hugo Pratt explica o registo adoptado: “Ser maçon é ser triste. Esta confraria é triste, eles ignoram a ironia.”

O universo maçónico, pelo qual o marinheiro acaba por manifestar simpatia ao desmascarar o traidor infiltrado entre os iniciados, não é o único referencial simbólico desta narrativa. O neoplatonismo e a cabala contribuem igualmente para reforçar a dimensão esotérica de Veneza (“Veneza é uma cidade esotérica”, disse Pratt), a quem o artista rende neste álbum uma sentida homenagem. Porém, ao aceitar o desafio do Barão Corvo, escritor britânico que morreu em Veneza em 1913, Corto Maltese dá um toque “policial” à procura da esmeralda salomónica. É uma busca subtilmente prosaica, que o leva a cruzar-se com o poeta Gabriele D’Annunzio, amigo de Mussolini que não simpatiza muito com os seus seguidores da juventude fascista, com Hipazia — a filha de Téon que acredita ser a reincarnação da matemática e filósofa grega Hypatia — e com Louise Brookszowyc, sósia da actriz americana Louise Brooks, entre outros personagens não menos singulares.

No final da história, depois de ter sido confrontado com as “coisas inacreditáveis” que acontecem na cidade, Corto conclui que o melhor é não “tentar compreender”, pois é sempre possível descobrir que mesmo as coisas mais reais — como a ambicionada esmeralda no bolso das suas calças – são feitas “da mesma substância dos sonhos”. E quando assim acontece — de facto, nunca se sabe muito bem onde termina o reino da razão e tem início o império da fantasia —, o herói bate discretamente a uma porta e sai da história, pedindo “para entrar numa outra, noutro lugar”. É o culminar de uma aventura intensa em que Hugo Pratt confessa ternamente a sua imensa paixão pela cidade italiana de Veneza, tão bela e tão encantada que gera todas as preguiças, deleites e sortilégios. Um deles é ela ser o lugar onde existem três lugares mágicos e secretos. Quando os venezianos, por vezes malteses, se cansam das autoridades, dirigem-se a estes lugares e, abrindo as portas que existem ao fundo desses pátios, partem para todo o sempre em direcção a países fantásticos e outras histórias.