Primeiro volume de “As Célticas”
Por: CARLOS PESSOA

Em trânsito para o palco europeu da I Guerra Mundial, Corto Maltese tem uma fugaz passagem por Veneza. Depois dá um salto a Dublin para ajudar os independentistas irlandeses

Os revolucionários do Sinn Fein acabam de realizar mais uma operação militar contra o Exército inglês nas ruas de Dublin. Um sombrio major O’Sullivan acalma os seus nervosos soldados e evita o pior a um fleumático Corto Maltese, que estava por perto no momento do confronto. “Teve sorte... Podia ter deixado aqui a pele esta noite”, diz-lhe o oficial. Sem um único sinal no rosto que revele as suas emoções, o marinheiro de Malta responde-lhe com total serenidade e seriedade: “Impossível... Ainda não decidi a data da minha morte...”

Esta situação passa-se em “Concerto em O Menor para Harpa e Nitroglicerina”, uma das histórias que compõem o primeiro volume de As Célticas, distribuído com a edição de hoje do PÚBLICO. Como se verá pelo desenrolar da narrativa, não será a única circunstância em que o herói mexe audaciosamente nos fios do destino naquela que é uma das mais borgesianas bandas desenhadas de Hugo Pratt. Glosando o tema do herói e do traidor com uma notável mestria, o criador italiano desenha em poucas pranchas a intrincada teia de relações que se estabelecem, em tempo de guerra e de sombra, de ambiguidade e ilusão, entre todos os protagonistas desta tragédia irlandesa.

Proveniente da América do Sul, Corto Maltese evoluirá durante os anos de 1917 e 1918 pelos vários palcos de guerra de um continente destroçado. Tal como em Dublin, também em Veneza (“O Anjo da Janela do Oriente”) e no palco da batalha do Caporetto (“Sob a Bandeira do Ouro”) adoptará em todas as circunstâncias — incluindo as mais extremadas — a mesma atitude distanciada de sempre. Nela, os seus inimigos lêem a manifestação de uma insuportável arrogância e sobranceria. E os amigos nunca se habituarão de todo ao seu imprevisível sentido de humor. Mas passado o primeiro momento de perplexidade, aceitam-no tal como ele é.