O meu primeiro contacto
com Corto Maltese foi
polémico. Publicava-se
então a edição portuguesa
da revista “Tintin”, quando
Vasco Granja cometeu a
heresia: numa separata a
preto e branco da revista,
começou a publicar as
histórias do marinheiro
de Malta. Foi um choque:
muitos dos miúdos (como
eu) ficaram irritados com
aquele herói que às vezes era
mau, com aquele desenho
completamente diferente
do traço certinho do Michel
Vaillant ou do Bruno
Brazil. Mas outros, eu entre
eles, ficaram fascinados
com aquela personalidade
multifacetada, rica,
contraditória. Aquele traço
livre, aquelas pinceladas com
que Hugo Pratt delimitava
o mundo de luz e sombras
em que o Corto Maltese
circulava fascinaram-me.
Acompanhei Corto nas
reviravoltas da Revolução
Russa: enquanto eu estava
decididamente do lado dos
revolucionários, ele andava
entre as duas bandas, às
vezes fugindo do Rasputine,
outras conspirando com
aquele vilão que o completa,
como a imagem invertida
de um espelho. Segui-o no
sertão brasileiro, misturado
em confusas histórias de
cangaço, estive ao lado dele
nas ruas de Dublin, lutando
ao lado dos independentistas
irlandeses, acompanhei-o
até Samarcanda. Não fui um
nómada convicto como ele,
mas creio que todos nós já
sentimos alguma vez aquela
vertigem de sair pelo mundo
sem limites de distância, de
tempo, de roteiro de viagem.
Corto foi um dos primeiros
heróis modernos.
Individualista convicto,
mas solidário e até capaz de
arriscar a vida por alguém
que acabou de conhecer. Um
homem de princípios, sem
dúvida, mas nem sempre
os princípios assépticos
do antigo herói virginal.
Um apaixonado, por vezes
perdido de amores, por vezes
capaz de virar costas às
mulheres mais fascinantes.
Normalmente (maldade
do Pratt!), as mulheres por
quem mais se apaixonou
morreram nos seus braços.
Ler um álbum do Corto é mergulhar realmente,
profundamente, num mundo
mágico, num realismo
fantástico capaz de nos fazer
esquecer tudo o resto.
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