Francisco Louçã - Individualista convicto mas solidário
DEPUTADO DO BLOCO DE ESQUERDA

O meu primeiro contacto com Corto Maltese foi polémico. Publicava-se então a edição portuguesa da revista “Tintin”, quando Vasco Granja cometeu a heresia: numa separata a preto e branco da revista, começou a publicar as histórias do marinheiro de Malta. Foi um choque: muitos dos miúdos (como eu) ficaram irritados com aquele herói que às vezes era mau, com aquele desenho completamente diferente do traço certinho do Michel Vaillant ou do Bruno Brazil. Mas outros, eu entre eles, ficaram fascinados com aquela personalidade multifacetada, rica, contraditória. Aquele traço livre, aquelas pinceladas com que Hugo Pratt delimitava o mundo de luz e sombras em que o Corto Maltese circulava fascinaram-me. Acompanhei Corto nas reviravoltas da Revolução Russa: enquanto eu estava decididamente do lado dos revolucionários, ele andava entre as duas bandas, às vezes fugindo do Rasputine, outras conspirando com aquele vilão que o completa, como a imagem invertida de um espelho. Segui-o no sertão brasileiro, misturado em confusas histórias de cangaço, estive ao lado dele nas ruas de Dublin, lutando ao lado dos independentistas irlandeses, acompanhei-o até Samarcanda. Não fui um nómada convicto como ele, mas creio que todos nós já sentimos alguma vez aquela vertigem de sair pelo mundo sem limites de distância, de tempo, de roteiro de viagem. Corto foi um dos primeiros heróis modernos. Individualista convicto, mas solidário e até capaz de arriscar a vida por alguém que acabou de conhecer. Um homem de princípios, sem dúvida, mas nem sempre os princípios assépticos do antigo herói virginal. Um apaixonado, por vezes perdido de amores, por vezes capaz de virar costas às mulheres mais fascinantes. Normalmente (maldade do Pratt!), as mulheres por quem mais se apaixonou morreram nos seus braços. Ler um álbum do Corto é mergulhar realmente, profundamente, num mundo mágico, num realismo fantástico capaz de nos fazer esquecer tudo o resto.