Os caminhos de Venexiana Stevenson e do herói voltam a cruzar-se, mas é nos olhos de Banshee que ele se abisma perigosamente
“Veneza seria o meu
fim!”, exclama Corto
Maltese no epílogo da
sua primeira aventura
europeia, no decorrer
da qual desmantela uma
rede de espionagem e
encontra Venexiana
Stevenson, com quem
já tivera antes uma
refrega nas Honduras.
A sua ânsia de partir
intriga Sorrentino, o
oficial italiano a quem
salvou a vida. Mas foi
Hugo Pratt, autor da
banda desenhada, quem
explicou as motivações
do seu personagem: “[Ele quis dizer] que
Veneza é muito bela,
que ali ficamos preguiçosos
e deixamos de ter
energia para partir.”
De facto, proveniente
da América Latina, o
marinheiro de Malta
não se detém por muito tempo na cidade — a ela regressará alguns anos mais tarde,
para viver uma bela aventura (“Fábula de
Veneza”) — e parte para outras paragens,
em Itália e mais para norte, na Irlanda. São
estes os pontos geográficos de referência das
histórias do primeiro volume de As Célticas,
que amanhã será posto à venda com o
PÚBLICO.
Em todas as histórias deste ciclo, o pano
de fundo é a I Guerra Mundial. No cenário
europeu, as potencialidades ficcionais da
série ganhavam outra dimensão, que Pratt
não hesita em aprofundar. E é bem verdade
que Corto nunca mais voltará a manifestar
interesse pelo tesouro de El Dorado — fio
condutor de “O Anjo da Janela do Oriente”,
publicado pela primeira vez na revista
francesa “Pif” (Setembro de 1971) —, que éa razão que o levou a atravessar o Atlântico
em tempos tão conturbados como os que se
viviam em 1917.
“Sob a Bandeira do Ouro” (revista “Pif”,
Novembro de 1971) apresenta a singularidade
de quase não vermos o herói. No entanto, é ele quem organiza toda a acção, cuja
finalidade é a recuperação, bem sucedida,
do tesouro do rei do Montenegro. Curiosamente,
um dos intervenientes na história é
Ernest Hemingway, anónimo condutor de
ambulâncias na época e futuro Nobel da Literatura,
que Pratt vê deste modo: “Alguns
pensam que é um dos maiores escritores
do século [XX], outros que é um indivíduo
medíocre. Para mim não é uma coisa nem a
outra. É um bom escritor, com livros mais
interessantes uns que outros.”
Já em “Concerto em O menor para Harpae Nitroglicerina” (“Pif”, Janeiro de 1972),
constata-se que nem um herói da estatura de
Corto Maltese escapa por inteiro ao furacão
devastador desencadeado pelas condutas
humanas. No campo de batalha que opõe
ocupantes ingleses e nacionalistas irlandeses,
o marinheiro abandona de forma inequívoca
a sua aparente neutralidade, quem
sabe se inconfessadamente enfeitiçado pela
bela guerrilheira Banshee O’Dannan. O episódio
valeu a Pratt uma visita dos serviços
secretos italianos, interessados em saber se
ele conhecia alguém que falasse em usar
anzóis para prender granadas aos carros
blindados:
“Respondi que o tipo que dizia isso chamava-se Collins [herói irlandês da independência,
abatido numa emboscada], mas que
estava morto.” ■
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