As mulheres de Corto - Fala Mariam

É Shamaël, o profeta cego, quem proclama imperiosamente em nome de Enoch a união entre Rhomah, irmão de Cush, o guerreiro danakil, e Fala Mariam, filha do ras Yaqob, chefe do clã cristão de Ogaden. Qualquer que fosse a luz a que se olhasse para esta aliança, dir-se-ia que o compromisso imposto a indivíduos com convicções religiosas distintas estava condenado ao fracasso. De facto, passados os primeiros tempos da vida a dois, “a vida naquela comunidade islâmica, que me criticava as origens infiéis, acabou por se tornar insuportável para mim”, confessava nos anos de 1924-25 Mariam ao explorador alemão Werner Hansen. A jovem deixou a aldeia de Rhomah em 1920, para nunca mais voltar.

Tudo o que se sabe hoje da bela Fala consta de um testemunho recolhido por aquele viajante alemão, que percorreu a Arábia do Sul e o Iémen, assim como a Etiópia e a costa francesa dos somalis, na primeira metade dos anos 20. O documento em causa era parte de um grupo maior de elementos destinados a um romance ou ao argumento de um filme que Hansen nunca faria — um obus de 55 mm atingiu-o em cheio em Al-Alamein, durante a Segunda Guerra Mundial.

O destino da mulher cruza-se com o de Corto Maltese em Addis- Abeba, onde se torna uma famosa cortesã, procurada e desejada por quem estivesse disposto a pagar os seus favores e atenções, por uma hora ou por uma noite: “Em companhia do conde Colli de Felizzano, ministro de Itália em Addis-Abeba, cruzei-me muitas vezes com um suposto marinheiro sem navio a quem chamavam Corto Maltese. Devia ser um pseudónimo, mas tinha uma figura agradável.”

Nos anos seguintes, a vida de Fala Mariam foi muito movimentada. Acabou na posse de uma importante herança deixada por um traficante com quem viveu e que desapareceu no Iémen sem deixar rasto. Investe a fortuna numa casa de “comércio de prazer” conhecida
por quantos se deslocavam desde o Canal do Suez até Ceilão, de Aden a Zanzibar. Com mal disfarçada ironia, Fala Mariam admitia não ser este “o digno fim de uma princesa da Abissínia”.

(Por lapso, foi publicado na semana passada, com este título, um texto que já tinha saído antes. As nossas desculpas.)