As deambulações do marinheiro de Malta levam-no à América Latina, onde decorrem as primeiras aventuras sob o signo do Capricórnio
Em Novembro de 1968 Hugo Pratt está na cidade italiana de Lucca para participar no único congresso mundial de banda desenhada que se realizava nos anos 60. Nos encontros e confraternizações que caracterizam estas reuniões internacionais, o artista italiano é apresentado ao chefe de redacção da revista francesa “Pif”, Georges Rieu. Palavra puxa palavra e surge o convite para Pratt desenvolver uma série para aquela publicação. Mas é só no princípio de 1970, quando se encontra desempregado e sem trabalho, que o autor toma a decisão de se meter no comboio que liga Génova a Paris.
“Explico o que quero fazer e ele concorda em me contratar, mas apenas à peça. Durante os três anos em que trabalhei na ‘Pif’ nunca assinei um contrato. Por isso, nunca haverá segurança de emprego nem qualquer garantia social. E os administradores da Pif’ eram todos membros do Partido Comunista…”, recordaria mais tarde o artista.
É assim que, de sete em sete semanas, o criador italiano entra na redacção com um episódio de 20 pranchas debaixo do braço. Ao todo, são 21 histórias cujo personagem central não é outro senão Corto Maltese, publicadas entre Abril de 1970 e Abril de 1973, e posteriormente agrupadas em quatro ciclos distintos — “Sob o Signo do Capricórnio” (as seis primeiras bandas desenhadas), “Corto Sempre Um Pouco Mais Longe” (7 a 11), “As Célticas” (12 a 17) e “As Etiópicas” (18 a 21). As deambulações do marinheiro de Malta começam por levá-lo à América Latina, onde decorrem as três aventuras que integram o primeiro volume de “Sob o Signo do Capricórnio”, A razão é simples: Brasil, Guianas, Venezuela ou Caraíbas foram locais onde Pratt viveu e deixou descendência. Não surpreende, por isso, que o artista tenha decidido tirar partido dessa sólida experiência de vida, projectando-a nas histórias iniciais de Corto Maltese.
O que é dado a ver ao leitor é um herói solitário e intransigentemente individualista, que não deixa o coração perturbar o seu discernimento mental — ainda que isso lhe custe deixar para trás mulheres tão belas como inteligentes. Essa conduta não o torna forçosamente uma criatura racional, pois a magia, o mistério e a mitologia ocupam um lugar sério no seu universo de referências e percursos pessoais — o que fica, desde logo, bem patente no mistério associado à origem do jovem Tristan, iniciado em “O Segredo de Tristan Bantam” e prosseguido em “Encontro na Baía”.
Os editores nem sempre veriam com bons olhos essa dimensão libertária e pouco ortodoxa do herói prattiano, mas o apoio do director da “Pif” impediu que as aventuras de Corto terminassem mais cedo. Pelo caminho, o autor iria ganhando algum espaço de manobra com histórias como “Samba com Tiro Certeiro”, um sentido hino à acção libertadora e anticapitalista dos cangaceiros no Brasil rural: “Um bandido ou um revolucionário? Digamos que [Corisco de São Jorge] não se dava bem com o governo. Robin dos Bosques ou Dick Turpin eram bandidos? Roubavam aos ricos para dar aos pobres. Não iam roubar os que nada tinham para dar aos ricos…”
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