Corto Maltese salvo por Raspoutine nos Mares do Sul
Por: CARLOS PESSOA

O primeiro volume de "A Balada do Mar Salgado", o romance gráfico de Hugo Pratt em que o marinheiro de Malta faz a sua aparição, é distribuído amanhã com o PÚBLICO.

No início, há um catamarã dirigido pelo cruel capitão Raspoutine, que recolhe dois náufragos, algures entre a Nova Pomerânia e as Ilhas Salomão, entre o meridiano 155º e o paralelo 6º Sul. Pouco tempo depois, a embarcação cruza-se com Corto Maltese, que tinha sido abandonado à sua sorte pelos marinheiros revoltosos do navio que comandava. Assim tem início "A Balada do Mar Salgado", primeiro álbum da série de aventuras de Corto Maltese que começam a ser distribuídas amanhã com o PÚBLICO.

O herói é apenas um entre outros personagens nesta longa história em que o verdadeiro protagonista é o oceano Pacífico. De certo modo, é como se o próprio criador, Hugo Pratt, hesitasse quanto ao rumo a imprimir à sua história, deleitando-se durante muito tempo a dispor as diferentes peças no tabuleiro antes de se decidir quanto ao destino de cada uma. Ao longo de mais de 160 pranchas - três álbuns na edição do PÚBLICO -, Corto Maltese vai ocupar progressivamente a ribalta, impondo-se a outras personagens marcantes - como Raspoutine, Pandora ou mesmo o misterioso Monge -, tanto pela sua presença física inconfundível como por uma atitude ética única.

A espessura psicológica e humana do herói, para o qual Pratt conceberá uma biografia e uma memória consistentes, só virá mais tarde. Porém, faça-se desde já a apresentação breve ao leitor: nascido em 1886 em La Valetta (ilha de Malta) de pai inglês, natural da Cornualha, e de mãe espanhola, domiciliada em Gibraltar e de origem andaluza, Corto Maltese é marinheiro de profissão, solteiro e sem filhos conhecidos. Mede 1,87 metros, tem olhos negros e traz um brinco na orelha esquerda. Apresenta um registo criminal pesado, incluindo uma condenação à morte por ter protestado contra uma sentença de um tribunal de Port Dundan (Caraíbas).

Graças a este belíssimo romance gráfico, Hugo Pratt é o primeiro italiano, depois de Caprioli (desenhador da mesma nacionalidade desaparecido em 1974), a explorar tematicamente aquela área do planeta. "Claro que há, como pano de fundo de 'A Balada do Mar Salgado', os romances de Stevenson, London e Conrad, mas foi em 'The Blue Lagoon' que encontrei esta visão de uma pequena ilha, dos atóis, da imensidade do Pacífico, assim como a ideia dos contrabandistas, dos piratas modernos. À excepção de Caprioli, as minhas influências foram anglo-saxónicas. E era espantosa na obra de Stacpoole [autor de 'The Blue Lagoon'] a descoberta do sexo entre dois jovens numa ilha, tanto mais que ele era filho de um pastor irlandês", recordou Pratt numa entrevista ao seu biógrafo Dominique Petitfaux.

O que diferencia o personagem de muitos outros heróis da banda desenhada é, sobretudo, a sua atitude perante a realidade. Aparentemente, não leva nada demasiado a sério, assumindo sempre um vincado distanciamento (que não se confunde com indiferença ou arrogância) mesmo nas situações mais difíceis. Para Corto, observador atento, as coisas são o que são, e não aquilo que ele (ou os outros) gostaria que fossem. Por isso, não há lugar a juízos de valor e muito menos à assunção de uma "verdade" que o personagem procure impor. Por mais paradoxal que possa parecer, isso não o impede de agir quando acha que é necessário - o que afasta a tentação de o classificar como um anti-herói -, como os leitores poderão comprovar. .