"Os segredos de um amor em tempo de guerra"
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 25 de Novembro de 2004
![](../../img/capas/casablanca.jpg)
Nesta obra-prima de Michael Curtiz vive-se a nostalgia de uma paixao interrompida pela invasao nazi, com um par romântico que, na realidade, nao se
dava assim tao bem. Mas, afinal, o que faz de "Casablanca" o filme mais adorado de todos os tempos? Por Rui Pedro Vieira
O ROMANCE
Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lund
(Ingrid Bergman). Dois seres perdidos em
recordaçoes, relembrando os dias em que
viveram uma paixao em Paris. As imagens
desse tempo surgem em "flashback" e o que
se pressente em "Casablanca" é a nostalgia de
algo que ficou por concretizar - Ilsa escapa ao
amor porque tempos difíceis se aproximam,
deixando Rick a espera, numa estaçao de comboios.
Casada com Victor (Paul Henreid), um
líder da Resistencia, percebe que o marido
está em maus lençóis, quando as suspeitas e
as delaçoes proliferam nos tempos amargos
da Segunda Guerra Mundial. A acçao decorre
agora na exótica Casablanca, um ponto estratégico
para fugir a repressao, e é nessa mesma
cidade que Rick tenta refazer a vida ao abrir
um clube nocturno. Quando menos espera, Ilsa
entra de rompante na sua vida, mas desta vez
para pedir ajuda na fuga do marido para os
Estados Unidos. O desenlace permanece incerto
mas os dois protagonistas sabem que,
independentemente do que acontecer, "haverá
sempre Paris".
O "CHARME" DE BOGART
Fala envolto em fumo de um cigarro, com um
copo de "whisky" nas maos, mas mantém uma
expressao triste, melancólica. Ao contrário dos
seus desempenhos de "eterno durao", Bogart
é em "Casablanca" um herói romântico. O
público nao estranhou a mudança de registo,
mas nas últimas cenas, em que aparece de
chapéu e gabardina cinzenta, percebe-se que
a carreira de Humphrey Bogart nunca se conseguiu
distanciar muito do cinema "negro". O
carisma da sua personagem, Rick, constata-se
na desenvoltura com que gere o seu bar (onde
os desacatos sao constantes) e na cumplicidade
com o pianista Sam (Dooley Wilson). Porém,
é um homem incrivelmente só, desiludido
com a vida, que esconde por detrás da máscara
do cinismo um amor disposto a todos os
sacrifícios. Os efeitos do regresso inesperado
de Ilsa ficaram expostos no célebre desabafo
do herói de fraca estatura, mas gigante na
presença emocional: "De todos os bares em
todas as cidades do mundo, ela tinha de entrar
logo no meu."
O OLHAR DE BERGMAN
Quando Ingrid Bergman aceitou desempenhar
o papel da bela e sofisticada Ilsa, assustava-a
nao conhecer o final do filme (o realizador
Michael Curtiz iniciara a rodagem sem que o
argumento estivesse concluído). As suas incertezas
artísticas acabaram reflectidas na
montagem final e esta ambiguidade pode ser
o segredo para uma interpretaçao magistral,
em que sobressai um olhar contido e apaixonado
- prestes a consumir-se em lágrimas.
Ilsa é uma mulher dividida entre o dever de
acompanhar o marido que admira ou renderse
a paixao antiga, despertada novamente nos
instantes em que volta a encontrar-se com Rick.
A fórmula clássica do "triângulo amoroso"
encaixa na perfeiçao em "Casablanca", com
o ar fotogénico da actriz sueca a ilustrar os
lugares inconstantes do coraçao.
A MÚSICA
"Play it again, Sam." A frase é uma das mais
célebres da história do cinema, embora nunca
seja proferida ao longo do filme. Tornou-se
numa referencia imediata para a melodia "As Time Goes By", o tema que ajudava a traduzir
em versos o amor entre Rick e Ilsa. No filme,
é ao som de um piano que a personagem Sam
canta a música a pedido dos protagonistas.
Contudo, o actor Dooley Wilson era, na
verdade, um baterista. Nas cenas em que
interpretou "As Time Goes By", o som das
teclas nao vinha das suas maos, mas das de
Elliot Carpenter, um músico que, nas gravaçoes,
se encontrava escondido por detrás de
uma cortina. O produtor Hal B. Wall chegou
a pensar nas cantoras Hazel Scott, Lena Horne
e até em Ella Fitzgerald para o papel de Sam,
mas Dooley Wilson pareceu mais convincente
e intimista. Depois da rodagem, o compositor
Max Steiner insurgiu-se contra a escolha de
"As Time Goes By" como tema principal e
propôs um outro, da sua autoria - que acabou
rejeitado porque os actores já estavam envolvidos
em outros projectos e nao podiam voltar
para regravar as cenas necessárias. "As Time
Goes By" foi escrito por Herman Hupfeld e
interpretado pela primeira vez no espectáculo
da Broadway "Everybody's Welcome".
A CENA FINAL
Está uma noite enevoada na pista do aeródromo
de Casablanca. Rick e o capitao Louis Renault (Claude Rans) caminham de costas
para o espectador, quando o protagonista
profere, em jeito de desabafo: "Louie, acho
que este é o começo de uma bela amizade."
A deixa, introduzida depois de a rodagem
estar concluída, continua a ecoar na mente
dos cinéfilos e foi o remate ideal para um
desenlace que deu várias dores de cabeça
a equipa de argumentistas. Falou-se na
possibilidade de Rick embarcar com Ilsa
no aviao para Lisboa ou de a mesma permanecer
junto do seu antigo amante em
Casablanca. A soluçao encontrada pode
ter contrariado o "happy ending" de que
Hollywood tanto gosta, mas ajudou a elevar
o filme de Michael Curtiz ao estatuto
de produçao lendária.
A RODAGEM ATRIBULADA
A medida que "Casablanca" se foi tornando
no melodrama mais adorado da história do
cinema, algumas histórias procuraram
desmistificar os meandros de um filme
tido como perfeito. As contrariedades
começaram, desde logo, na construçao do
argumento, baseado na peça de Murray
Burnett, "Everybody Comes to Rick's". Os
responsáveis pela adaptaçao, Wally Kline e Aeneas McKensie, acabaram substituídos
por Julius e Philip G. Epstein, depois requisitados
para gravar obras de propaganda.
O atraso obrigou Michael Curtiz a iniciar
as gravaçoes sem conhecer ainda o rumo
do casal protagonista. Consta que Ingrid
Bergman questionava frequentemente o
realizador sobre o significado de cada cena
e a única resposta que conseguia obter era
a de um explícito "nao sei". Além de sucessivos
problemas financeiros, a rodagem de
"Casablanca" ficaria ainda famosa pelo
mau ambiente entre Bogart e Bergman. A
"química" exposta no ecra nao tinha correspondencia
na vida real, com a actriz sueca
a revelar, anos mais tarde: "Nunca cheguei
a conhece-lo. Beijei-o, mas nao o conheci."
Discutiam constantemente algumas cenas e
a mulher de Bogart na época, Mayo Methot,
telefonava para os estúdios por desconfiar
da fidelidade do marido. A falta de empatia
entre o par romântico de "Casablanca" nao
era só o que atormentava Michael Curtiz.
Havia ainda um pequeno problema de tamanho:
Bogart era um pouco mais baixo do
que Bergman e teve de representar alguns
dos momentos mais tocantes da história em
cima de um caixote ou sentado sobre uma
almofada.