Uma questao de honra
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 02 de Dezembro de 2004
Neste "western" de John Ford, o tenente-coronel Owen Thursday (Henry Fonda), figura prepotente e ríspida,
quer a todo o custo derrotar uma tribo índia. E nem a proposta de diálogo do capitao Kirby York (John Wayne)
parece travar a batalha iminente.
Quando perguntaram a Orson Welles
que cineastas o tinham inspirado na
criaçao da obra-prima "O Mundo a
Seus Pés", a resposta incidiu sobre
os realizadores "clássicos" que, a seu
ver, eram "John Ford, John Ford e
John Ford". O "mago dos 'westerns'",
filho mais novo de uma família de
imigrantes irlandeses, começou a
dirigir filmes em 1917 e nao abrandou
o ritmo durante cerca de seis
décadas. As histórias passadas "no
velho Oeste" tornaram-se no tema
primordial da sua extensa obra
(com mais de 130 títulos), embora
tenha também assinado alguns melodramas,
documentários, filmes de
guerra e biografias históricas.
No seu todo, a herança cinematográfica
de Ford traduziu-se numa
coerencia artística que lhe valeu quatro
Óscares de melhor realizador e os
mais rasgados elogios. O estilo, para
muitos poético, envolvia-se nas tradiçoes
de um país, focando o perfil de
homens simples que nao hesitavam
em defender as fronteiras de um território
marcado por paisagens áridas
e luminosas. "Forte Apache" (1948),
o filme desta semana da colecçao
Clássicos Público, parece condensar
a maioria dos traços distintivos dos
seus "westerns".
Neste primeiro capítulo dedicado
a cavalaria norte-americana - os
outros dois filmes sao "Os Dominadores"
(1949) e "Rio Grande" (1950)
-, regressam as grandes batalhas
entre soldados e índios, havendo
ainda oportunidade para questionar
os valores militares entre dois
homens e assistir as peripécias de
um romance nao autorizado. A lendária
cumplicidade entre John Ford
e o seu actor de eleiçao, John Wayne,pressente-se em "Forte Apache", embora
o protagonismo esteja entregue
a Henry Fonda, outro repetente na
obra de Ford.
O eterno Tom Joad de "As Vinhas
da Ira" é, desta vez, Owen Thursday,
um tenente-coronel irascível, prepotente
e, acima de tudo, cumpridor
dos seus deveres de combatente.
No início da história, ele e a filha
Philadelphia (Shirley Temple) deslocam-
se para o enclave fronteiriço
de Forte Apache e um desabafo de
Thursday desfaz as dúvidas sobre
a aceitaçao desta mudança forçada:
"Maldito departamento de guerra
que me enviou para aqui."
A ameaça índia é real, mas o novo
líder de um regimento anteriormente
chefiado pelo capitao Kirby York (John
Wayne, num registo mais pacífico
e modesto) nao esconde que preferia
combater a tribo Sioux em vez dos
guerreiros Apache - entendidos
como "moscas" que precisam de ser
"enxotadas".
Duelo étnico e moral
Além do confronto racial que domina
quase toda a acçao, as duas
personagens principais de "Forte
Apache" competem ainda pela razao.
Se Owen Thursday considera que o
ataque directo (isto é, o extermínio)
da tribo índia liderada por Cochise
(Miguel Inclán) é a melhor soluçao,
já o capitao York prefere a via do diálogo
por perceber que o "inimigo" é
mais organizado e digno do que a primeira
vista possa parecer. Contudo,
num período de fortes hierarquias é
Thursday quem tem a última palavra
e York nao ve outra soluçao se nao
seguir uma medida extrema que vai
contra os seus princípios.
O massacre torna-se iminente e
Thursday vai perceber (demasiado
tarde) que pode estar enganado na sua
decisao. O que nao o demove de lutar
até ao fim por aquilo em que acredita.
Os momentos finais da batalha sangrenta
surgem envoltos em névoa e
John Ford dá um cunho lendário a
figura prepotente que motivou o conflito.
Esta aparente ironia prova que a
rigidez militar nunca deve desdenhar
a figura da autoridade - Owen Thursday,
personagem baseada na vida do
general George Armstrong Cluster,
deve ser respeitado até pelas deliberaçoes
menos consensuais.
Embora "Forte Apache" se desenvolva
a partir de uma contenda
étnica, há ainda uma história de
amor entre Philadelphia, a filha do
protagonista, e o capitao Michael
O'Rourke (John Agar). A uniao entre
os dois jovens está seriamente comprometida
porque a personagem de
Henry Fonda proíbe Philadelphia de
se encontrar com o namorado. No
final, percebe-se que nem sempre a
ordem intransigente consegue concorrer
com o ímpeto romântico.
Prodigioso contador de histórias,
John Ford consegue, com esta obra,
traçar um olhar simbólico e límpido
sobre o seu género de eleiçao.
Em entrevista a revista "Cahiers
du Cinéma", em Março de 1966,
reconheceu ser admirador do "lado
mais simpático do 'western'" porque
"o herói é demasiado grande, sobrehumano,
mas nao mais do que os outros
heróis da História". Em "Forte
Apache", Owen Thursday pode nao
ser o mais prudente e afável dos
homens mas rege-se pelo princípio fundamental dos grandes líderes: a
honra.
A "técnica invisível"
de John Ford (factos e lendas)
John Ford dizia que um dos
segredos dos seus filmes era a
opçao por seguir uma "técnica
invisível", que levava o espectador
a esquecer que estava a
ver um filme. Esta foi uma das
poucas pistas que o realizador
de "Forte Apache" deu sobre o
seu trabalho. Sabia-se também
que era especialmente cuidadoso
na economia das filmagens e
evitava que os técnicos de montagem
fugissem as sequencias de
planos previamente acordadas
por si. Mas nao gostava de "dissecar"
a sua obra porque dizia
que esse tipo de análise só faria
sentido quando estivesse morto.
Quando o realizador Jean-Luc Godard,
entao um jovem jornalista,
o questionou sobre o que o tinha
trazido até Hollywood, a resposta
que obteve revelou-se surpreendente:
"O comboio".