"Melodrama feito de sombras"
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 18 de Novembro de 2004
Neste clássico intimista de
Nicholas Ray, aquilo que
começa por ser um "film
noir" transforma-se numa
história de amor entre uma
mulher cega e um polícia que
parece nao querer ver
No cinema de Nicholas Ray, o herói é
alguém que nao gostava de o ser, ou
melhor, que costuma andar a deriva,
dividido entre obsessoes e fantasmas.
A figura do "perdedor" é, em "Cega
Paixao/On Dangerous Ground"
(1952), assumida pelo polícia Jim
Wilson (Robert Ryan), um homem
solitário que se vai tornando cada
vez mais agressivo com o ambiente
urbano envolvente.
A sua imagem, de chapéu e gabardina,
lembra as mais famosas composiçoes
de Humphrey Bogart no cinema,
mas este agente Wilson tem mais
olheiras do que charme e nao sente orgulho
no modo de vida marginal que
é obrigado a seguir (embora trabalhe
ao lado da lei). O dever de polícia tornou-
o numa pessoa desencantada, um
inadaptado que se encontra perdido
entre o fumo dos bares e as luzes das
ruas movimentadas. Embora se sinta
deprimido com a violencia exigida no
exercício da profissao, continua a ser
o melhor agente da sua esquadra e nao
consegue libertar-se de uma rotina
viciante (e viciada).
Depois de alguns comportamentos
excessivos, é obrigado pelo seu chefe
a deslocar-se até uma regiao inóspita e gelada do Alasca, a montanhosa
Westham, para resolver o misterioso
homicídio de uma jovem, assassinada
quando se dirigia para a escola na
companhia da irma. O agente cumpre
a ordem e é neste momento que o "film
noir" de imagens sombrias e densas dá
lugar a um drama romântico suportado
por paisagens vastas e luminosas.
A deslocaçao de Jim Wilson para
esta localidade coberta de neve representa
também uma mudança no estilo
narrativo. Abandonam-se os hábitos
urbanos do protagonista e recupera-se
o fôlego. O polícia vai a procura de um
assassino, mas nao é aí que reside o
mistério de "Cega Paixao". Em vez do
"thriller" convencional, o realizador
Nicholas Ray prefere os dilemas da
personagem principal, que se modifica
quando conhece Mary Malden (Ida
Lupino), uma mulher cega.
Malden está sozinha em casa e é
neste espaço fechado que Wilson vai
ter de enfrentar nao só o assassino que
procura, mas também os seus medos
interiores. A mulher recebe-o com
poucas cerimónias e, desde logo, pressente-
se uma empatia. A curiosidade
leva-a a questionar o homem que veio
ao seu encontro sobre como é ser-se
polícia. "Acabamos por nao acreditar
em ninguém", é a resposta que obtém
do protagonista. Malden percebe que
até neste ponto é diferente da pessoa
amargurada que se encontra na sua
sala de estar: por viver numa permanente
escuridao, precisa de confiar
nos outros para conseguir lidar com
a sua limitaçao física.
Da obscuridade faz-se luz
Jean-Luc Godard chegou a afirmar
que "o cinema é Nicholas Ray". Em
Hollywood, circulava também a ideia
de que nenhum actor, por mais fraco
que fosse o talento, conseguia ter um
mau papel quando era dirigido pelo
realizador, que começou por estudar
Arquitectura e deu nas vistas na produçao
de programas de rádio.
Ray tornou-se num realizador
sensível, pessimista, com as histórias
e as personagens dos seus filmes a espelharem
muitas das inquietaçoes que
o atormentaram em vida. A angústia
e a existencia vertiginosa podem ser
detectadas no perfil de Jim Wilson,
que, depois de uma vida passada na
sombra, pode encontrar a estabilidade
onde menos espera.
"Cega Paixao" parece dividido em
dois filmes, duas faces de uma mesma
moeda. O espectador segue a mudança
de registo narrativo quase sem se aperceber.
E o mérito vai, mais uma vez,
para o estilo visual único de Ray.
Enquanto cineasta, acabou por ser
pouco valorizado pela crítica da sua
época. A Academia quase o esqueceu e
apenas o nomeou uma vez, para o Óscar
de Melhor Argumento Original, com
"Fúria de Viver". Apesar disso, filmes
como "Filhos da Noite" e "Johnny Guitar"
continuam a ser entendidos como
obras-primas absolutas.
"Cega Paixao" surgiu numa fase
em que o realizador já estava perfeitamente
instalado na indústria
de cinema e reflecte a maturidade de
alguém que centrava as suas histórias
em lugares psicológicos instáveis. Se
Mary Malden é cega, Jim Wilson parece
nao querer ver. E é desta obscuridade
que se vai fazer luz.