"A máscara do riso e da doçura"
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 11 de NOvembro de 2004

Por detrás do disfarce de jovem ladrao está, afinal, uma frágil mulher. Nesta comédia de enganos, o realizador George Cukor realça o fascínio que sentia pela sua actriz de eleiçao, Katharine Hepburn

Nunca foi a mais feminina das actrizes, mas o nariz empinado, a voz estridente e a garra que revelava em todos os papéis tornaram-na numa das estrelas mais carismáticas do cinema. Gostava de usar calças, praticar os mais variados desportos e discutir em voz alta. Talvez por isso, Katharine Hepburn tenha demorado algum tempo a convencer Hollywood do seu inegável talento.

Em "Sylvia Scarlett", o filme desta semana da colecçao Clássicos Público, aproveita as poses de maria-rapaz para dar vida a uma jovem que é obrigada a disfarçarse de homem para nao levantar suspeitas sobre um roubo. O papel de Sylvia (que, em grande parte da acçao, se assume como Sylvester) voltou a nao ser bem aceite nas bilheteiras, mas é, hoje, entendido como um bom exemplo da comédia de enganos e um passo seguro na longa relaçao da actriz com o realizador George Cukor.

Nesta história de falsos ladroes, Hepburn consegue tomar as rédeas da acçao e dita o ritmo dos acontecimentos. De cabelo curto e roupas justas, convence todas as personagens que a envolvem de que é um rapaz e há até uma cena polémica de um beijo com outra mulher. O despudor e a vontade de brincar com a sexualidade chocaram o público conservador de 1936, mas George Cukor (1899-1983) nao desistiu daquela que se tornaria a sua actriz de eleiçao.

Tal como Hepburn, Cukor tinha começado a sua carreira no teatro e parecia dar mais importância a força dos diálogos e a direcçao de actores do que aos pormenores técnicos de um filme. Chegou a afirmar que, se lhe dessem um bom argumento, tornar-se-ia "100 vezes melhor realizador". Acabou por ficar conhecido como "o cineasta das mulheres", mas, se houve uma estrela que o marcou verdadeiramente, foi, sem dúvida, a protagonista de "A Irma da Minha Noiva", "Casamento Escandaloso" e "A Costela de Adao".

A amizade estendeu-se por cinco décadas e os 15 filmes que fizeram em conjunto revelaram uma profunda identificaçao artística. George Cukor encontrou em Hepburn a mulher perfeita, que, no cinema, parecia possuir as doses equilibradas de independencia e romantismo. Era também a personificaçao do temperamento movediço, capaz de alterar o rumo de uma história com um simples desabafo.

 

Vigaristas de bairro

Em "Sylvia Scarlett", a protagonista exibe uma ambiguidade sexual pretexto para uma "guerra dos sexos" divertida e romântica. George Cukor apresenta um conjunto de personagens azaradas que nem na arte de enganar o próximo irao sair-se bem. E só quando Sylvia decide retirar a máscara de "jovem deliquente" consegue sentir-se mais próxima da felicidade, propósito que vai concretizar nos braços do artista Michael Fane (Brian Aherne).

Ao lado de Katharine Hepburn está, pela primeira vez, Cary Grant. Este foi um encontro prometedor, porque as duas estrelas voltariam a contracenar juntas em tres outras ocasioes (como em "As Duas Feras", de Howard Hawks). Grant é, desta vez, Jimmy Monkley, um vigarista elegante que usa o charme e a discriçao nos seus golpes. Conhece Sylvia disfarçada e o seu pai, Henry Scarlett (Edmund Gwenn), quando estes se encontram em fuga para Inglaterra, depois de uma estadia instável em Marselha. Os tres decidem unir esforços, formando uma "equipa" de ladroes condenada a partida.

Depois de várias peripécias mal sucedidas, refugiam-se no campo e montam um pequeno espectáculo teatral. É aqui que Sylvia conhece Michael Fane, o artista plástico que a convida a posar para um dos seus trabalhos. A jovem apaixonase e, como na fábula de "Patinho Feio", constata-se finalmente a beleza por detrás do disfarce.

George Cukor utiliza o retorno de Sylvia Scarlett a sua feminilidade como sinal de um amadurecimento do registo narrativo, passando dos delírios da comédia ligeira para as fragilidades do melodrama romântico.

Apesar do espírito austero e da alcunha de "veneno das bilheteiras", Katharine Hepburn mostra, em "Sylvia Scarlett", por que se tornaria conhecida, mais tarde, como "a primeira dama do cinema".

 

Os Óscares de Hepburn (factos e lendas)

Teve uma vida longa (morreu, no ano passado, aos 96 anos) e preenchida com papéis memoráveis no cinema. O talento de Katharine Hepburn tornou-a numa recordista absoluta em matéria de Óscares. Além de 12 nomeaçoes (feito apenas superado por Meryl Streep), Hepburn recebeu quatro estatuetas douradas na categoria de Melhor Actriz pelos seus desempenhos em "Glória de Um Dia" (1933), "Adivinha Quem Vem Jantar" (1966), "O Leao no Inverno" (1967) e "A Casa do Lago" (1981). O exito valeu-lhe também o reconhecimento de "maior lenda do cinema" segundo o American Film Institute.

 
"O Mundo a Seus Pés"
DE ORSON WELLES

"Um clássico que revolucionou a indústria artística, nos seus reflexos de testemunho e de onirismo. A partir dele, nada se adiantou - sobre os desígnios do poder, a influencia dos meios de comunicaçao, a vagabundagem visionária, os mistérios e os fantasmas da infância..."
"As Duas Feras"
DE HOWARD HAWKS

"O exemplo perfeito das 'screwball comedies', num requinte de ambiguidades morais e sexuais. Um prodígio quanto a narrativa e ao diálogo, ao tempo de acçao, aos efeitos de surpresa, ao absurdo dos artifícios, ao carisma extravagante dos intérpretes."
"Os Dominadores"
DE JOHN FORD

"Uma vibrante celebraçao da saga 'western', tendo John Wayne num dos seus mais formidáveis desempenhos, com a fenomenal reavaliaçao de Ford, em que ao envolvimento de massas se recorta, afinal, o vulto solitário dos protagonistas."
"King Kong"
DE MERIAN C. COOPER E
ERNEST B. SCHOEDSACK


"Épico do terror-fantástico, e um dos clássicos primordiais de culto, mantém um sortilégio essencial: em magia, exotismo, aventura, 'suspense', pulsao erótica em que se transcende o mito entre a bela e o monstro. Eis o espectáculo virtual por excelencia."