"A dúvida mora ao lado"
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 04 de Novembro de 2004

Depois de uma lua-de-mel de sonho, uma mulher receia que o marido possa ser o responsável pela
morte do seu melhor amigo. As desconfianças levam-na a temer pela vida e Alfred Hitchcock envolve-
-se no retrato de um possível criminoso com um único objectivo: surpreender o espectador
Alfred Hitchcock tinha um pequeno
naipe de actores aos quais confiava
o protagonismo dos seus filmes. No
cinema, interpretavam, quase sempre,
falsos heróis, inocentes acusados de
maquinaçoes megalómanas ou meras
personificaçoes dos fantasmas daquele
que também ficou conhecido como "mestre
do suspense". Cary Grant foi um deles,
conjugando a postura de gala com
as fragilidades de quem acaba sempre
enredado em conspiraçoes alheias.
Admirado por Hollywood, o protagonista
de "Suspeita/Suspicion" - o
filme desta semana da colecçao de DVD
Clássicos Público - nao se sentiu intimidado
quando, numa entrevista, um
jornalista deixou escapar o desabafo
de que "todos gostariam de ser Cary
Grant". Perante tal consideraçao, as
primeiras palavras que proferiu foram:
"Eu também."
Era a imagem do homem sedutor,
que todas as mulheres sonhavam ter a
seu lado. Consta que a figura de James
Bond, o agente secreto 007, foi pensada
segundo as suas características físicas
e os trejeitos das personagens mais
famosas que interpretou no cinema.
Em "Suspeita" (1941), Grant aceitou
um desafio arriscado: o de dar vida a
Johnnie Aysgarth, um vigarista que,
numa estranha combinaçao de humor,
romantismo e atitudes misteriosas, vai
confundir a mente da mulher, a doce e
desconfiada Lina McLaidlaw.
O desempenho conquistou o público
embora o estúdio RKO Pictures tenha
forçado Alfred Hitchcock a alterar o
final inicialmente previsto. A culpa,
mais uma vez, foi do carisma do actor
e do receio que os espectadores nao
se identificassem com a personagem.
Mesmo assim, o novo desenlace nao
desilude porque o realizador de "Janela
Indiscreta" é um perito em subtilezas
narrativas, bastando um gesto, um olhar
ou um curto diálogo para levarem a história
numa outra direcçao.
Neste "film noir" mascarado de
drama conjugal, o virtuosismo técnico
serve de complemento para as bases do
"thriller" psicológico que investe no
campo das possibilidades. O ponto de
partida é o de uma análise profunda
sobre aquilo que define e confunde a
identidade de um assassino. Um tema
complexo a altura das ambiçoes narrativas
de um cineasta insatisfeito e, talvez
por isso, genial.
O amor pode matar
Em todas as obras de Hitchcock, por detrás
de um protagonista em apuros está
sempre uma bela e insinuante mulher
(de preferencia loura). Em "Suspeita",
cabe a Joan Fontaine a responsabilidade
de suportar todas as consequencias
emocionais do conceito que dá título ao
filme. Lina, de 27 anos, conhece Johnnie
Aysgarth numa viagem de comboio. O
homem insiste em meter conversa e
pede-lhe dinheiro para poder viajar em
primeira classe. Contra a vontade dos
pais, a jovem apaixona-se e decide aceitar
o pedido de casamento de Johnnie.
Depois de uma lua-de-mel de sonho,
Lina percebe que o marido nao é quem diz ser e que depende financeiramente
de empréstimos, apostas e apropriaçoes
ilícitas. Além disso, a vaidade leva-o a
desdenhar ofertas de emprego e a empenhar-
se em negócios condenados a
partida. O clima romântico começa a
perder força e dá lugar a um jogo denso
de suspeitas sobre a identidade e as motivaçoes
de Aysgarth. A estranha morte de
Beaky Twaithe (Nigel Bruce), o melhor
amigo da personagem interpretada por
Cary Grant, e o interesse nas revelaçoes
de uma afável escritora de policiais, Isobel
Sedbusk (Auriol Lee), levam Lina a
vigiar todos os movimentos do marido
e a temer pela vida.
O momento em que Johnnie sobe as
escadas com um copo de leite nas maos
(que pode conter veneno) é o sinal claro
de que este é um filme de Hitchcock. O
desfecho só pode ser surpreendente e há
ainda espaço para divertidas alusoes ao
"crime perfeito" que figuram em grande
parte das histórias de detectives.
Baseado no romance "Before the
Fact", de Francis Isles, "Suspeita" conta
ainda, como é hábito, com uma pequena
participaçao de Hitchcock. O realizador
surge, por breves instantes, a meio da
história para colocar uma carta na estaçao
de correios da vila onde moram
os protagonistas.
O filme venceu um Óscar na categoria
de Melhor Actriz pelo desempenho cerebral
de Joan Fontaine. Neste labirinto
irresistível, o cineasta que conseguiu
atribuir um novo significado a palavra
"mistério" insiste em fintar o espectador.
Com a subtileza e a inspiraçao do
costume.
Os caprichos do mestre (factos e lendas)
Alfred Hitchcock era muito crítico com o
seu trabalho. Pouco antes de morrer, em
1980, considerou que nao tinha realizado
"aquele grande filme" que o preenchesse
por completo. No documentário "Um
Perfil de Hitchcock: Os Primeiros Anos",
um dos extras do DVD de "Suspeita",
amigos e colegas recordam algumas das
excentricidades do realizador. Quando se
encontrava em rodagem, era comum um
barbeiro aparecer nos estúdios, as dez da
manha, para lhe fazer a barba. Outro dos
seus hábitos era beber chá quente e lançar
a chávena vazia para trás das costas.