"A bela e o monstro"
Por RUI PEDRO VIEIRA
Quinta-feira, 28 de Outubro de 2004
"King Kong" chega hoje a colecçao de DVD Clássicos Público. Uma aventura
colossal que conquistou toda a gente, deixando na memória a célebre
sequencia em que o gorila gigante trepa até ao topo do Empire State Building
de Nova Iorque. Para trás, fica a rodagem conduzida por um realizador megalómano
e uma odisseia passada na floresta, onde
animais pré-históricos ganham vida.
A OPINIÃO
"'King Kong' mantém
um sortilégio essencial:
em magia, exotismo,
aventura, 'suspense',
pulsao erótica em
que se transcende
o mito entre a bela
e o monstro. Eis o
espectáculo visual por
excelencia" JOSÉ DE MATOS-CRUZ, Historiador de Cinema
Um gorila gigante, uma mulher desesperada e uma indústria de
cinema surpreendida com uma fábula visionária que é também
uma estranha história de amor. Depois de "King Kong", tudo se
tornou possível na imaginaçao fértil de Hollywood
Quando a indústria de
cinema ainda lutava
contra os efeitos devastadores
do "crash"
financeiro de 1929, o
realizador de documentários
Merian C. Cooper teve a
ideia de criar "a mais recente
aventura". Chamou ao seu escritório
uma actriz habituada
a participar em filmes de terror
e disse-lhe que iria contracenar
com "o actor mais alto e mais
moreno de Hollywood".
Para Fay Wray, que acabou
por ficar para sempre ligada
ao exito desta bizarra história
de amor, a escolha natural seria
o actor Cary Grant. Porém,
quando viu o desenho de um
enorme gorila no topo do Empire
State Building percebeu a
dimensao colossal do projecto
e o aspecto grotesco do seu "colega"
de rodagem.
"King Kong" (1933) tornou-
se num mito colectivo,
um sucesso sem precedentes
que colocou, de uma vez por
todas, a fantasia e o terror
como géneros ambiciosos e
potencialmente lucrativos.
Hoje, continua a ser olhado
como o filme de monstros
mais importante do cinema,
quer pelo ritmo alucinante,
quer pela reconversao da fábula
de "A Bela e o Monstro"
numa estranha obsessao entre
um gorila pré-histórico e uma
lendária e estridente actriz
(Wray, a "scream queen" dos
anos 30, falecida este ano).
Os custos de produçao chegaram
aos 670 mil dólares, um
valor elevado para uma época
de contençao. O estúdio independente
RKO Pictures estava
a beira da falencia e colocou
o seu futuro financeiro nas
maos dos realizadores Merian
C. Cooper e Ernest B. Shoedsack.
Quando estreou, "King
Kong" foi o primeiro filme a
ser exibido simultaneamente
nas principais salas de cinema dos Estados Unidos. Num só
dia, 50 mil pessoas assistiram
fascinadas a um universo lendário
carregado de criaturas
bizarras que estendiam os
horizontes da ficçao até ao
limite.
Baseando-se na obra "O
Mundo Perdido", de Arthur
Conan Doyle, e nos relatos de
captura de animais selvagens,
a dupla de realizadores confiou
no técnico de efeitos especiais
Willis O'Brien para dar um
movimento realista ao gorila
gigante e a outras espécies
jurássicas. Porém, antes das
sequencias de acçao, a história
de "King Kong" debruçase
sobre as suas personagens
humanas e dá a conhecer um
realizador em decadencia, Carl
Denham (Robert Armstrong),
que prepara uma expediçao
para realizar mais um filme
de aventuras. A sua reputaçao
cinematográfica nao é a
melhor, com críticas sucessivas
"a falta de romantismo"
das suas obras.
Para contrariar esta ideia,
Denham pretende contratar
uma actriz e, ao vaguear pelas
ruas de Nova Iorque, assiste a
uma cena em que uma mulher
tenta roubar uma peça de fruta
para matar a fome. O instante
dá a conhecer a bela Ann Darrow
e as desigualdades sociais
que, no início da década de 30,
afectavam os EUA.
Um gorila em Nova Iorque
Sem saber o tema do projecto
para o qual foi contratada, a
jovem aceita entrar no filme
de Denham, pensando que
a longa-metragem lhe pode
trazer "dinheiro, aventura
e fama". Com uma pequena
tripulaçao, a equipa embarca
em direcçao a misteriosa
Skull Island, um território
inexistente nos mapas que
se tornou lendário pelas suas
montanhas em forma de caveira.
Este é o momento em que o
filme deixa o realismo urbanoe se prepara para entrar num
mundo paralelo, o da fantasia
desmesurada e exótica.
Chegados a ilha desconhecida,
os visitantes deparam-se
com centenas de indígenas
em ritos de celebraçao de uma
estranha criatura, a quem
oferecem mulheres como
sacrifícios. Os caracóis loiros
de Ann Darrow sao desde logo
cobiçados pela tribo, que nao
descansa enquanto nao a rapta
e a entrega a King Kong. No
primeiro momento em que o
gorila surge no ecra, a surpresa
e o terror instalam-se. A equipa
de rodagem esquece a ideia de
fazer um filme e procura apenas
escapar com vida.
A presença de King Kong
nas ruas de Nova Iorque é
justificada pela personagem
de Carl Denham que deseja
tornar o gorila numa atracçao
inédita. A ambiçao vai catapultar
a fábula para um dos finais
mais conhecidos do cinema
clássico: o momento em que
o monstro trepa até ao cimo
do Empire State Building, levando
consigo a desesperada
e tétrica Darrow.
O desenlace será trágico, mas
pleno de emoçao. A mensagem
que fica é a de uma estranha
história de amor, marcada
pela ganância humana, mais
do que pela ameaça animal.
O culto em torno de "King
Kong" serviu de inspiraçao
para inúmeras obras de aventuras,
mas nenhuma delas
conseguiu repor o fascínio e
o medo provocados por esta
figura imponente e lendária.
Afinal, "foi a beleza que matou
o monstro".
Uma técnica revolucionária (factos e lendas)
Em Skull Island, os dinossauros
sao uma ameaça real, aspecto
que, em 1993, também inspirou
Steven Spielberg na criaçao de
"Parque Jurássico". As cenas
de combate de "King Kong" sao
memoráveis, com movimentos
inéditos e "mágicos" para a
época. O técnico de efeitos
especiais, Willis O'Brien, teve
a responsabilidade de dar
vida aos seres pré-históricos,
com especial destaque para o
gorila, também baptizado de "a
oitava maravilha do mundo".
O processo foi demorado, mas
surpreendeu pela forma como
conseguiu combinar actores de
carne e osso com um boneco,
quase sempre feito de espuma e
de dimensoes nao superiores a
40 centímetros. As sequencias
de acçao foram filmadas
imagem por imagem, criando-se
depois, no seu encadeamento,
a ilusao de movimento. Para os
planos aproximados de King
Kong, a produçao construiu
uma gigantesca figura de seis
metros, coberta de pelo de
urso, com cabos que exigiam a
presença de seis homens para
a movimentar. Esta marioneta
de grandes proporçoes pode,
hoje, sete décadas depois,
parecer antiquada e até algo
primária. O que nao corrompe o
espírito aventureiro da história,
servindo de contraponto a
recente invasao digital no
cinema.