"A comédia mostra as garras"
Neste segundo DVD da colecçao Clássicos Público, Katharine Hepburn e Cary Grant envolvem-se numa "guerra dos sexos", onde há espaço para um leopardo e um esqueleto de dinossauro
A OPINIÃO
"'As Duas Feras' deve apreciar-se, sem nostalgia nem preconceito, como um clássico apelativo a plenitude virtual de fascínio e de modernidade"
JOSÉ DE MATOS-CRUZ, historiador de cinema
Quando aceitou protagonizar "As Duas Feras/Bringing Up Baby", a actriz Katharine Hepburn nunca tinha experimentado o registo da comédia física e teve de receber indicaçoes do realizador Howard Hawks para ser credível nas inúmeras peripécias em que a sua personagem, a enérgica Susan Vance, se envolve para conquistar o coraçao do sisudo David Huxley (interpretado por Cary Grant). O desempenho, um dos mais memoráveis da sua carreira, corresponde a imagem juvenil e apaixonada que caracterizam a maioria das protagonistas dos filmes de Hawks.
No documentário "Howard Hawks: Um Artista Americano", um dos extras disponíveis no DVD do PÚBLICO, o cineasta sintetiza, na perfeiçao, o comportamento hilariante de Hepburn, fundamental para que "As Duas Feras" seja considerada uma obra-prima de Hollywood: "Nos meus filmes, elas gostam de montar a cavalo, de caçar, de fazer tiro e outras coisas... Nao costumam gostar de outras mulheres e gostam de ter os homens por perto. Se tem uma ideia qualquer, dizem-no."
Nesta comédia "screwball", género onde os diálogos sao acelerados e os equívocos sucedem a cada momento, Susan surge na vida de David quando este apenas se concentra na tarefa de reconstituir um esqueleto de dinossauro. Como paleontólogo dedicado, David espera receber um último osso para concluir o projecto que lhe exigiu quatro anos de investigaçao. Com uma vida organizada ao milímetro, nada melhor do que ser surpreendido pela presença contagiante de uma jovem descontraída que usa todas as estratégias ao seu alcance para ser amada. Susan entra de rompante na rotina do protagonista e vira-a do avesso.
Nesta história, onde até os argumentistas Dudley Nichols e Hagar Wilde se apaixonaram enquanto se encontravam em pleno processo de escrita, há espaço para muitas surpresas, como um leopardo domesticado, conhecido por "Baby". O felino é uma prenda para a tia milionária de Susan, mas a jovem usa-o como mais um elemento de atracçao das atençoes do confuso paleontólogo.
"Ironias afectivas "
"As Duas Feras" (1938) foi uma lufada de ar fresco no registo da comédia romântica. Em plena década de 30, os diálogos, as piadas e as insinuaçoes em relaçao ao sexo oposto nunca tinham sido expostos de uma forma tao leve e transparente. Há referencias aos filmes de "gangsters", trocadilhos em relaçao a abordagem da psicologia sobre os afectos e, pela primeira vez no cinema, o termo "gay" é usado, sob a máscara da ironia, para se referir a homossexualidade.
Howard Hawks parecia determinado em brincar com alguns chavoes de Hollywood. Sempre seguindo uma linha narrativa coerente - por nao acreditar "em deixas divertidas, mas sim em situaçoes divertidas" -, o cineasta leva os dois protagonistas a viverem momentos de enorme exigencia física para criar quadros cómicos irresistíveis. Com um ritmo frenético, Hepburn e Grant vivem o amor como um jogo exigente, para o qual é preciso ultrapassar uma série de provas atléticas - rasgar fatos de noite, ir a caça de um leopardo em plena madrugada ou passar umas horas na prisao sao só alguns exemplos. Na meta, espera-os um final feliz.
Em Hollywood, dizia-se que Howard Hawks envolvia-se artisticamente num projecto que, por coincidencia, era aquele que o público mais queria ver. Para o catálogo das memórias de Hollywood deixou clássicos como "O Grande Escândalo" (1940), "Ter ou Nao Ter" (1944) ou "Céu Aberto" (1952).
Quando "As Duas Feras" se estreou no cinema, as receitas nao satisfizeram os interesses da produtora RKO. Ironicamente, com o passar dos anos, esta obra-prima tornou-se num dos melhores exemplos dos passos que uma comédia deve seguir para levar o espectador ao riso.