O
Quarto Mandamento
Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2005
Por:Ana Filipa Gaspar
Um filme irrecuperável
Podia ter sido tão grande ou maior do que "O Mundo a Seus Pés", mas a liberdade criativa de Orson Welles foi condicionada pelo estúdio. Em "O Quarto
Mandamento", a família Amberson vive o drama da sua queda e ruína.
"Eu escrevi o argumento e realizei-o. Eu sou Orson Welles." Como
numa peça radiofónica que chegou ao fim, assim se apresenta o
realizador de "O Quarto Mandamento/The Magnificent Ambersons"
(1942), após ter evocado os protagonistas e os membros da sua
equipa técnica. Um ano após a sua obra-prima, Welles transpôs
para o grande ecrã o drama de uma família aristocrática de Indianápolis
(Midwest, EUA), baseando- se no romance homónimo de Booth Tarkington
distinguido com o prémio Pulitzer.
Nostalgicamente,
é a voz de Welles que conduz os primeiros momentos do filme. Revela
ao espectador os hábitos e a moda no final de século XIX e acompanha
as aventuras e desventuras das personagens que em breve vão dominar
a história. A imagem assemelha-se a uma fotografia antiga que
o tempo desgastou e deixa a sensação de um passado remoto.
Eugene
Morgan (Joseph Cotten) procura Isabel Amberson (Dolores Costello)
na mansão da sua família, o "orgulho" de Indianápolis. Eugene
é um jovem inventor que ama Isabel, mas fez figura de tolo durante
uma serenata à amada e esta ficou tão envergonhada que
acabou por aceitar casar com outro pretendente, Wilbur Minafer
(Don Dillaway).
Isabel e Wilbur têm um filho, George Amberson Minafer, que é uma
criança insuportável e detestada por toda a população. George
torna-se num jovem arrogante (Tim Holt), que para infelicidade
de todos ainda não aprendeu a sua lição. Nas suas férias, a mansão
dos Ambersons realiza um baile onde Eugene reencontra Isabel,
vários anos depois de ter partido. Agora é um inventor de automóveis
bem sucedido e traz consigo a filha Lucy (Anne Baxter), por quem
George se apaixona.
No entanto, Wilbur morre e Eugene tenta aproximar- se de Isabel,
que sempre o amou. Com ajuda da tia Fanny (Agnes Moorehead), George
intromete-se na relação e não deixa a mãe ser feliz, destruindo
ainda o seu romance com Lucy e arruinando a fortuna dos Ambersons.
É uma história marcada pela oposição entre o passado e o futuro
- o conservadorismo representado pelo jovem George e os tempos
modernos trazidos por Eugene e pelo seu automóvel. A decadência
de tudo o que é ocioso e antigo é uma realidade no final do século,
quando os tempos são de mudança. George acaba por não se adaptar
e vai receber em troca aquilo que todos lhe desejavam - a ruína
e a solidão.
A
intervenção do estúdio
Antes de a pós-produção de "O Quarto Mandamento" estar concluída,
Orson Welles foi convidado pelo Departamento de Estado norte-americano
para realizar um documentário na América do Sul e viajou para
o Brasil, com o objectivo de filmar "It's All True" no Panamá,
projecto que iria ficar incompleto.
Entretanto, o estúdio RKO apresentou o drama em antestreia e obteve
uma má reacção por parte do público. Estávamos em plena Segunda
Guerra Mundial, meses depois de os japoneses atacarem Pearl Harbor,
e a história do filme era deprimente. O presidente da RKO, George
Schafer, incumbiu o editor Robert Wise de alterar "O Quarto Mandamento".
Foram eliminados mais de 40 minutos, filmaram-se novas cenas e
criou-se um novo final. Contudo, o pior golpe foi o estúdio ter
destruído a versão que Welles havia filmado e montado, argumentando
falta de espaço. O que restou foi o guião original, adaptado em
2001 por Alfonso Arau para uma mini-série televisiva.
Este incidente marcou definitivamente a carreira de Orson Welles.
Hollywood não voltaria a dar-lhe a liberdade criativa de que usufruiu
em "O Mundo a Seus Pés" e anos mais tarde Welles queixava-se de
ter "muito poucas hipóteses de realizar". A sua convicção, tal
como expressou em entrevista a Peter Bogdanovich, era de que "se
não lhe tivessem mexido, 'Ambersons' seria muito melhor que 'Kane'".
Elenco e equipa excepcionais
Apesar de não corresponder ao original e de ter sido incompreendido
pelo público da época, "O Quarto Mandamento" foi elogiado pela
crítica e nomeado para os Óscares como Melhor Filme, Melhor Actriz
Secundária (Agnes Moorehead), Melhor Fotografia (Stanley Cortez)
e Melhor Decoração de Interiores a Preto e Branco (Mark-Lee Kirk).
Ao longo do filme, são vários os aspectos técnicos que se destacam.
Ao nível do som, Welles utiliza a experiência da rádio. Os diálogos
sobrepõem-se naturalmente e as vozes variam consoante a localização
no espaço. A população da vila e os boatos que transmitem entre
si recordam o coro das tragédias gregas, explicando as imagens
que vimos antes ou prevendo acontecimentos futuros. A própria
banda sonora de Bernard Hermann sobressai pela forma como exprime
os acontecimentos.
A luz também influencia a acção que se desenrola, pelo que, em
certas ocasiões, as personagens surgem iluminadas, mas noutras
surgem sombrias ou mergulhadas na escuridão. A acompanhar estão
os movimentos da câmara de Cortez, que filma as cenas em profundidade
e utiliza a imagem para transmitir a noção da passagem do tempo.
Quanto às interpretações, o elenco escolhido por Welles
é constituído por colegas do Mercury Radio Theather e actores
relativamente desconhecidos, mas com desempenhos marcantes. Agnes
Moorehead tornou-se inesquecível pelo seu grito e olhar alucinado
quando diz "não me importava que me queimasse toda". Tim Holt
conseguiu ser tão desagradável como a sua personagem exigia, provocando
antipatia no espectador. Anne Baxter começava uma promissora carreira,
recebendo um Óscar quatro anos depois. Joseph Cotten e a estrela
do cinema mudo Dolores Costello formaram um casal com muito "charme"
e empatia. E até a mansão representa uma personagem na história.
Não é apenas um cenário, mas possui um efeito dramático, sobretudo
através da escadaria central.
Factos e Lendas
Histórias
paralelas
Orson Welles escreveu o argumento de “O Quarto Mandamento” em
apenas nove dias e justificou a escolha do romance de Tarkington
pelo facto de este se ter inspirado no seu pai para a personagem
de Eugene Morgan. Além disso, a história tem lugar no Midwest,
onde Welles cresceu. Dois anos antes do filme, tinha adaptado
a história para uma peça de rádio, na qual representava o papel
de George. Diz a lenda que quando Welles viajou para a América
Latina e o estúdio decidiu modificar a versão final do filme,
o realizador levou uma cópia do original. Contudo, até hoje não
foi comprovada e a cópia não foi encontrada. Outra história diz
que a RKO e o editor Robert Wise tentaram contactar Welles, mas
devido ao clima de guerra era complicado estabelecer comunicação
com locais distantes. Após as alterações do estúdio, o autor da
banda sonora, Bernard Hermann, recusou incluir o seu nome no genérico,
porque a RKO acrescentou música de Roy Webb.