O Sr. e a Sra. Smith
Quinta-feira, 03 de Fevereiro de 2005

Por:Ana Filipa Gaspar

Eles amam-se e detestam-se

"Se tivesses de fazer tudo de novo, voltavas a casar comigo?" Esta é uma pergunta aparentemente inofensiva, mas não para David e Ann. Afinal, o seu casamento não é válido. E agora? Será que voltam a casar-se ou cada um segue o seu caminho? Alfred Hitchcock apresenta-nos uma excepção: a comédia romântica "O Sr. e a Sra. Smith".

Incompreendido por muitos, "O Sr. e a Sra. Smith/Mr. and Mrs. Smith" (1941) é considerado um filme atípico na carreira de Alfred Hitchcock. Para reconhecer o valor desta comédia, é aconselhável não tentar encontrar nela as características que tornaram célebre o "mestre do suspense".

O casamento do Sr. e da Sra. Smith não é tradicional e tem regras próprias. Desistir de uma delas é desistir da relação. Por exemplo, após uma discussão, nenhum dos dois pode sair do quarto até fazerem as pazes e se sair já não pode voltar. Foi Ann (Carole Lombard) quem estabeleceu estas regras e acredita que são o segredo da sua felicidade com David (Robert Montgomery).

Porém, nem tudo é tão simples. Outra regra do casal é a possibilidade de cada um fazer uma pergunta a que o outro responde com total sinceridade. Apesar do risco, Ann pergunta a David: "Se tivesses de fazer tudo de novo, voltavas a casar comigo?" A resposta é não. David explica que a ama, mas preferia ter ficado solteiro e aproveitado melhor a sua liberdade. Contudo, é apenas uma questão "hipotética", acrescenta o Sr. Smith.

Mais tarde, David é confrontado com a revelação de que o seu casamento não é válido. Um funcionário notarial informa-o que, devido ao rio que atravessa a cidade, foi decidido que a localidade onde celebraram a união pertence a um condado e um estado diferentes. Assim, têm que voltar a casar-se para garantir a legalidade dessa união.

Aqui começam os problemas. Após uma tentativa frustrada de construir um ambiente romântico, semelhante aos tempos de noivado, Ann expulsa David de casa e volta a usar o nome de solteira. Surgem outros homens a cortejá-la e David não evita as cenas de ciúmes. Entretanto, o seu melhor amigo e sócio, Jeff Custer (Gene Raymond), também revela-se interessado e a reconquista de Ann torna-se cada vez mais difícil.

Sucedem-se as situações caricatas e ridículas do dia-a-dia de David sem Ann, mas sempre a segui-la, e de Ann sem David a tentar organizar uma vida nova. É uma pura "screwball comedy" com uma actriz adequada ao protótipo hitchcockiano, a bela loira Carole Lombard a ofuscar os desempenhos masculinos.

Uma experiência única Segundo Hitchcock, houve uma tentativa de

"À sua terceira produção americana, Alfred Hitchcock assinou um dos filmes mais insólitos e surpreendentes, durante a extensa carreira em que se consagraria como mestre do suspense"

JOSÉ DE MATOS-CRUZ, Historiador de Cinema

seguir rigorosamente o guião de "O Sr. e a Sra. Smith". O cineasta dizia não perceber as personagens do filme, porque não conhecia quem agisse da mesma forma. Mas é a sua perspectiva que vemos na passagem do contexto romântico da relação para o ponto de vista subjectivo dos Smiths. E é o seu olhar irónico que filma a cena mais sinistra da comédia, quando Ann barbeia David com uma lâmina e em simultâneo conversam sobre confiança.

Existem duas versões dos factos que levaram Hitchcock a aventurar-se por um domínio que não era o seu. O realizador Eric Rohmer conta que foi Norman Krasna, argumentista e autor da história original, que sugeriu a adaptação ao cineasta britânico. Contudo, François Truffaut, igualmente realizador, apresenta outra perspectiva. Quando chegou aos EUA, Hitchcock foi viver numa casa arrendada a Carole Lombard, desenvolvendo um fascínio pela actriz, para quem o termo "screwball comedy" foi criado. E foi através de um pedido de Lombard que Hitchcock cedeu em realizar a história que a actriz queria protagonizar. Este foi um dos últimos filmes em que Lombard participou, vítima de um acidente fatal dois anos depois.

Lançado após o "thriller" "Suspeita" (outro dos "Clássicos Público"), a comédia r o m â n t i c a dos Smiths foi gravada nos estúdios da RKO e conta com a mesma equipa na fotografia, cenários e montagem - Harry Stradling, Van Nest Polglase e William Hamilton, respectivamente. Destaca-se ainda o trabalho de Krasna, que, durante a década de 40, foi muito popular pelos seus argumentos e peças de teatro, sendo distinguido com um Óscar como argumentista de "Princess O'Rourke" (1943), filme em que também foi realizador.

 
"O Mundo a Seus Pés"
DE ORSON WELLES

"Um clássico que revolucionou a indústria artística, nos seus reflexos de testemunho e de onirismo. A partir dele, nada se adiantou - sobre os desígnios do poder, a influencia dos meios de comunicaçao, a vagabundagem visionária, os mistérios e os fantasmas da infância..."
"As Duas Feras"
DE HOWARD HAWKS

"O exemplo perfeito das 'screwball comedies', num requinte de ambiguidades morais e sexuais. Um prodígio quanto a narrativa e ao diálogo, ao tempo de acçao, aos efeitos de surpresa, ao absurdo dos artifícios, ao carisma extravagante dos intérpretes."
"Os Dominadores"
DE JOHN FORD

"Uma vibrante celebraçao da saga 'western', tendo John Wayne num dos seus mais formidáveis desempenhos, com a fenomenal reavaliaçao de Ford, em que ao envolvimento de massas se recorta, afinal, o vulto solitário dos protagonistas."
"King Kong"
DE MERIAN C. COOPER E
ERNEST B. SCHOEDSACK


"Épico do terror-fantástico, e um dos clássicos primordiais de culto, mantém um sortilégio essencial: em magia, exotismo, aventura, 'suspense', pulsao erótica em que se transcende o mito entre a bela e o monstro. Eis o espectáculo virtual por excelencia."